terça-feira, outubro 18, 2011

O monstro do armário IX

Que porra de sonho esquisito foi aquele? Puta- que-o pariu. Imagina, eu, excitada, abrindo um caixão matusalém, procurando uma sacana que maltratou o coração de uma poeta! E quem encontro? Outra sacana. Não sei quem foi mais filha da puta, Átis ou Cláudia. Posso fazer um julgamento assumidamente pessoal e passional, à la Dom Casmurro? Pois então lá vai: a mulher mais vagabunda do mundo é Claúdia! Eu a odeio! Átis? Pobre coitada, deve ter sido seduzida pela safada da Safo, caiu de amores, envenenada por aquela poesia mulherificada.Safo pode ter até sofrido mas,na minha opinião, ela sabia que sofreria. Se arriscou. Foi ela quem atacou. E, para mim, a culpa é de quem seduz, de quem conquista. Principalmente se a sujeita vai embora depois, dizendo: "Ow, foi legal ter te conhecido".
Acho que preciso de um banho para espantar esses exus. Hoje é sexta feira 13. Puta que na merda. Vou tomar banho, vou para a faculdade, faço prova, volto e hiberno por uns 15 anos, até meus hormônios estarem mais calmos. Até chegar o momento em que será possível respirar.

Que tanto de panela suja, Jesus de Deus! Às vezes penso que em alguma fenda invisível de alguma dessas paredes existe um monstro muito do mal, especialista em fazer proliferar a sujeira da cozinha.
Tento garimpar pelo menos um copo que seja, no meio desse melecão todo. Nada. Xingo o monstro nomeando-o com os mais deploráveis palavrões.O infeliz nem se dá ao trabalho de me responder e fico pensando que ele está rindo de mim, porque acordei de mau humor e me ver assim o diverte. Ele, este habitante dos micro-túneis sombrios dos tijolos é, sem dúvida,parente daquele outro, que mora no armário do quarto há eras geológicas. São primos. Ou serão gêmeos siameses?Não sei. Só sei que eles são os responsáveis pela existência de todas as baratas.
Pensar em baratas me fez desitir do café da manhã. Espalho Baygon pela cozinha inteira, com a esperança de que o monstro morra e saio correndo para o banheiro.

É sempre assim : toda vez que fico pelada penso em sacanagem. E embora eu tenha acordado hoje amaldiçoando minha namoradinha da adolescência, é nela que penso agora.

Meus pensamentos lascivos começam meio penumbráticos, tipo, um barulho de interfone, era de tarde, eu a esperava, meu coração trepidava como um operador de furadeira, eu suava, eu morria de febre.. No meu entre-pernas coisas estranhas aconteciam também. Eu estava derretendo? Uma doçura incrível circulava por meus peitos e fazia um tour, descendo até meu útero e ficava assim, irrigando meu corpo todo de desejo.
Eu abrindo a porta.. Ela entrando... estava linda. Putz, isso é redundância. Nós duas indo direto para o quarto...

Nosso diálogo:
Eu: Desculpa, Cláudia, pela merda que falei.
Ela: Nossa, quantos livros!
Eu: Cláudia, não sou preconceituosa. É que fiquei muito assustada com essas coisas desconhecidas todas desestabilizando meu corpo e...

Ela: Caralho, quantos discos!


( acho que essa foi a hora exata em que me apaixonei mesmo por ela, quando ela chamou meus CDs de discos)

Ela estava fascinada, olhando para minha estante. Eu estava fascinada olhando para as costas dela. Eu me aproximei. Olhei para a loba e fiquei meio hipnotizada, acariciando-a com as pontas dos meus dedos. Houve um silêncio pré-histórico( aquele de antes do macaco, quando tudo era feito de caos e sem ruido algum). A seiva mágica que circulava no meu sangue se agitou ainda mais. Então Cláudia se virou para mim, cheirou meus cabelos como se eles fossem lírios e me beijou.

Foi estranho e bonito.

Ficamos na sacanagem a tarde toda, misturando corpos e líquidos e toda nossa furiosa ternura juvenil.
Hamlet, coitado, infeliz e sozinho, chorava do lado de fora.

















O monstro do armário VIII


__ Cadê a tatuagem?__ Marina perguntou, à queima roupa.__ Ontem fiquei doida pra ver.
__ Ah... A minha lobinha...__ Disse Cláudia, abrindo um esplendoroso sorriso sacana no entre- parênteses da face morena.
Afastou os cabelos das costas e se virou, de modo que Marina pudesse ver o desenho colorido.
Marina estremeceu. Chegou muito perto de Cláudia. A amiga tinha uma nuca linda e o cheiro que vinha de lá a adoeceu. E a loba era o máximo. Dava vontade de sentir com os dedos. Dava vontade de sentir com os lábios. Marina tocou o trecho tatuado e, num impulso inconsciente aproximou a boca das costas de Cláudia, mas antes de beijá-la, foi interrompida por um grupo histérico de alunas do segundo ano que entrava eufórico no banheiro, quebrando o encanto daquele momento de encontro.
As duas ficaram um pouco constrangidas, mas fingiram que uma estava abotoando o sutiã da outra. Lá fora continuaram a conversa:

__ Cláudia, to tão feliz por ter te conhecido! É uma felicidade estranha. Parece que to em estado de graça.
As duas trocaram olhares comovidos e se abraçaram. Marina pensou que fosse explodir, mas era alarme falso.
__ Você tem muitos amigos? Perguntou Marina.
Cláudia respondeu:
__ No México eu tinha. Minha mãe não gostava muito deles. Por isso me mandou pra cá. Dizia que as amizades negativas não estavam me fazendo bem. Muito tradicional, ela.
__Mas por que ela não gostava dos seus amigos? Aposto que eram maconheiros. Que careta ela... Que pessoa da nossa idade nunca fumou um?
__ Eles eram todos gays. Homens gays, mulheres gays. Foi por isso. E ninguém gostava de maconha.__ Disse Cláudia, sorrindo.
__ Como assim?
__ Todo mundo era bicha e sapatão. Fui clara?
__ Eu entendi. Mas por que você andava com gente desse tipo? Se eu fosse sua mãe também ficaria brava.

Cláudia se enfureceu:
__ Não acredito que to ouvindo isso de você!

Marina se assustou e disse:
__ Calma, Claudia, você está gritando! Por que ficou assim tão nervosa de repente? O que eu fiz?
Cláudia a interrompeu, mais transtornada ainda:

__ Preste atenção, pirralha: como você queria que eu me sentisse? Primeiro você fica morrendo de vontade de ver minha tatuagem. Depois, me dá uma alisada daquela lá dentro do banheiro, e, por pouco, não me dá uma lambida também! Depois diz que está em estado de graça por ter me conhecido... E olha que a gente se conheceu ontem! E eu aqui, sentindo as mesmas coisas e acreditando que estivesse acontecendo algo entre a gente. Então você me dá um banho de água fria com esse papo preconceituoso... Que decepção.

__ Claudia, eu quero uma amiga. Pensei que...
__ Amigas não ficam se desejando, Marina.
Ao dizer isso, se afastou magoada, sem se despedir.

Marina era uma efígie muda no coração do I.E.

As últimas aulas foram um suplício. Marina estava confusa. Não queria ser mal- interpretada, estava também assustada com aquela felicidade mágica e estranha que sentia e o com o transe que quase a levou a beijar as costas da amiga. O que estaria acontecendo?Seu coração estava atormentado.
Quando a aula terminou, Marina foi até o armário de Cláudia e deixou um bilhete que dizia o seguinte:

Claúdia,
Desculpa!
Tô confusa...
Se ainda quiser conversar comigo, vai lá em casa: A gente toma uns vinhos e eu te mostro uns discos.
Um beijo, na loba.

segunda-feira, outubro 17, 2011

O monstro armário VII


A noite de sono de Marina não tinha sido nada tranquila: como havia dormido a tarde inteira  depois de ter chegado da escola, teve muita dificuldade para dormir a noite. Quando conseguiu, sonhos eróticos se misturaram a exóticas cenas de canibalismo e de rituais sagrados desconhecidos.
Ela acordou antes do horário programado no despertador. Ainda não havia amanhecido.
Para Marina, acordar era uma coisa muito difícil. A coisa mais difícil do dia, por mais que este tivesse complicações que se parecessem, muitas vezes, com monstros apocalípticos cabeludos.
Um dos motivos que a deixava tão deprimida ao amanhecer era o fato de que sempre dormia muito tarde. Quando acordava tinha a sensação de que havia apenas cochilado e, junto com essa sensação, vinha uma preguiça profunda da vida, das pessoas, do sistema, da rotina, etc. e tudo o que ela mais queria era dormir para sempre. Mas não era a morte que desejava. Queria dormir para sempre estando viva, para ter consciência de que estava dormindo e do quanto dormir é bom. A preguiça profunda acompanhada de lancinante tristeza aparecia num momento específico: quando começava o barulho do tráfego. Antes, às 5h da manhã, era o silêncio absoluto na ainda escuridão do quarto; depois, à medida que os móveis iam tomando forma, graças à luz que timidamente penetrava as persianas, começavam os roncos dos motores de veículos diversos e isso deprimia fortemente nossa protagonista.
O motivo nos escapa e cremos que a ela também. Coisas de espíritos inquietos e melancólicos.
Ela acordou ainda com o gosto da carne de uma mulher, a qual devorava em sonhos, em meio à fogueiras ancestrais. Sentiu o silêncio, ouviu a escuridão, foi tomada pelas dores provocadas pelo barulho da vida germinando das ruas que já haviam despertado. Deu um pulo da cama quente, banhou-se, fez o desjejum. Tomou coragem e partiu para o I.E.
Precisava ver Cláudia.
Na escola, o mesmo movimento de sempre, as mesmas cores de sempre, o mesmo relógio acusador de sempre. Mas havia algo que tornava, naquela manha, a atmosfera daquele lugar diferente: esse algo tinha uma tatuagem de loba nas costas. Marina não compreendia bem esse desejo aflito de ver a nova amiga, mas preferiu não pensar muito sobre o assunto. Desejava ver Cláudia e era isso que importava.
Sua vida, até então, tinha sido solitária. Nunca tivera amigos íntimos, nem tinha um namorado. Tinha um cão, que se chamava Hamlet, que já contava cinco anos. Passava suas tardes devorando histórias de ficção, passeando pelas vidas de suas personagens, fazendo reflexões sobre essas vidas de papel e sobre sua própria existência. Lia e relia poemas, sorvia cada palavra, como se fosse doce de leite na época da menstruação. Seu universo lírico era repleto de poesia, de cenas de filmes, as quais via infinitamente, de belas canções que provocavam nela o sonho e o desejo de sonhar cada vez mais.
Se considerava uma garota feliz, no entanto sentia que faltava algo: alguém com quem pudesse compartilhar de seu universo. E esse alguém_ ela sentia_ era Claudia. Sua futura melhor amiga.
Na sala 14, a aula estava entediante. Os pensamentos de Marina se perdiam no dia anterior, quando, durante a palestra de Virgínia. L ela havia conhecido Cláudia. Ela estava tão perto! Apenas uma parede as separava.
O garoto gordo, das bolinhas de meleca, estava inerte: não desenhava pintos e nem enfiava o dedo no nariz. As formigas, quando se aproximavam dele, faziam uma cara assustada e davam meia volta. A garota loira, por sua vez, não largava o espelho, para o qual olhava obsessivamente.
O sinal soou estridente por todos os corredores de portas vermelhas, anunciando a hora do intervalo.
Claudia, com cara de sono, estava prestes a sair do banheiro, quando deu de cara com Marina, que sorriu um voluptuoso sorriso solar.

quarta-feira, outubro 05, 2011

O duplo do voo

I
Bandeira triste

O aeroporto em frente,
lições de partir.

II
Garimpar a beleza da partida

Urubu é bicho forte
é  voo
obscuro
que se nutre
de morte.

sexta-feira, setembro 23, 2011

O monstro do armário VI



“Que cara inchada é essa, Marina?” Me pergunta o idiota do Lu. Indivíduo mais babaca. Se acha o rei do contrabaixo, e o homem mais lindo de toda Belo Horizonte. È um dos integrantes de plástico da minha banda de plástico. E me disse essa gracinha sem graça, só porque estava perto de uma garota de peitos grandes, que provavelmente daria pra ele no fim do expediente. Os outros nem me cumprimentaram. Reclamaram do meu pequeno atraso de 30 minutos, dizendo que eu estava comprometendo o trabalho deles, e que se não quisesse continuar tocando, iriam contratar outra saxofonista. Como não queria me aborrecer mais uma vez, fiquei calada.
Fizemos nosso showzinho medíocre de quinta-feira, na mesmice de sempre: Luzes de boate, fumaça de cigarro, casais no cio, bandejas de garçons flutuando sobre cabeças chacoalhantes que ficavam escuras e coloridas alternadamente. E eu ficando enjoada de tudo, de vez em quando, e me refugiando atrás da escuridão de meus olhos fechados. E soprando meu sax, com toda a paixão de meu espírito inquieto.
Às vezes, algum cara babão ficava me olhando com uma cara esquisita, achando que estava fazendo uma expressão sedutora. Uma cara ridícula de demente. Então eu fechava os olhos mais forte ainda, e tentava me concentrar na minha música. Quando eu abria os olhos, o cara babão já estava lá, enfiando a língua dele na boca de alguma garota de saia curta.
       A música sempre foi minha salvação.
Depois do expediente, o pessoal sempre fica numa mesa tomando cerveja. Ficam lá, se embebedando e tentando seduzir as tietes. E isso eles fazem com facilidade, porque, é incrível como as garotas ficam impressionadas e se sentem atraídas por gente que sobe em palcos.(Mais especificamente,por garotos que sobem em palcos para tocar, porque nunca vi elas rasgarem calcinhas por causa do rapaz que monta o som,ou por causa do menino que varre a sujeira que nós deixamos lá em cima)).Eu vou-me embora para Parságada, porque tenho faculdade todas as manhãs, sempre no horário absurdo dos padres, como na época do colegial. Saio sem me despedir, como sempre.
Adeus, por hoje, mundo de plástico.
Caminho rumo á estação de metrô. Na Rua da Casa Noturna tem uma boate gay. Sempre que passo por ali, voltando do trabalho, vejo muito movimento, a música é envolvente, e muitas vezes, tive vontade de entrar. Mas não sei o que eu faria sozinha num lugar assim, então nunca entrei.
Hoje vi uma cena diferente, que me chamou a atenção: duas garotas discutiam. Uma delas tinha o cabelo raspado, e tatuagens por todo o corpo. Usava uma camiseta preta e tinha espetos metálicos na língua, nas orelhas e no nariz. Muitos espetos metálicos. Parecia muito brava e insensível, enquanto a outra, que tinha belos cabelos ondulados e longos, e uma pele maravilhosamente morena, chorava.
Fiquei o resto do caminho pensando no motivo daquela cena. Por que estariam assim, tão transtornadas? Fiquei com vontade de estar no lugar da moça careca. Eu não estaria tão brava, e em vez de ficar com a cara amarrada, teria abraçado a bela garota que chorava.
O metrô veio vazio, como em todas as noites. Fiquei olhando a paisagem noturna. O vento estava frio. Junho se aproximava.
Cheguei em casa mais deprimida do que sempre. Abri um pacote de biscoitos e me sentei na frente da TV desligada. Hamlet me olhava com os olhos tristes e doentes dos cães que sabem que vão morrer. Senti uma coisa estranha. Uma tristeza tão funda e cortante! Senti-me infeliz, e pressenti as saudades que eu teria do meu cachorro, assim que ele morresse, e senti também, meio que inconscientemente, que ele era uma espécie de elo que me unia a outra época da minha vida, época que insistia em ficar apodrecendo em mim, como um enorme e feio cemitério abandonado.
Sussurrei delicadamente seu nome, venerado desde minha primeira leitura de Shakespeare, e ele se levantou, todo murcho, com as orelhas caídas, com os olhos tão pesados de morte, literalmente com o rabo entre as pernas, e magro como judeu em Auschwitz, e se entregou dócil às minhas tristes carícias. Os meus olhos e os dele estavam úmidos. E pensei: “estou acariciando a morte”. “Isso é morte, esses olhos tristes de cão doente.”
Em seguida, depois de minutos intermináveis chorando antecipadamente a morte de Hamlet, caminhei pesadamente para o quarto. Dormi sem escovar os dentes, e sonhei que eu era uma arqueóloga, que abria sarcófagos, onde se encontravam os lascivos poemas de Safo. Em um dos sarcófagos estava escrito “Átis”. Me  lembro de , no sonho, ter ficado excitada com o ideia de conhecer a tão famosa amada de Safo, mesmo que decomposta.Quando abri a tampa do antigo esquife,lá estava Claudia, com uma plaquinha que dizia “ me mate em seu coração”.
Acordei sobressaltada.

O monstro do armário V


Me lembro  perfeitamente daquele orgasmo confuso, melancólico e desesperado, naquela tarde chuvosa, ao som de lamentáveis violinos paternos e ruídos de unhas caninas na porta do quarto. E me lembro que a fome, que havia desaparecido, me atacou violenta, depois que gozei, mas não tive coragem ir a até a cozinha pegar o resto do meu almoço, porque eu teria de encarar Hamlet e, talvez, meu pai, e eu estava com vergonha. Vergonha de ter sentido tanto prazer pensando numa menina, e era como se meu pai fosse capaz de descobrir o que eu passei a considerar, a partir de então, meu terrível segredo. Então chorei muito, e dormi faminta.

Não sei por que, mas a lembrança dela, mesmo tendo passado tanto tempo, ainda me enche de febres. Adoeço. Quantas outras vezes, depois que ela voltou para o México, ainda não morri de amores solitária, em meus lençóis amarrotados e impregnados de lembranças doces e quentes?

E já fazia tempo que eu não pensava nisso. E, de repente, uma ferida aberta, numa manhã desbotada, me engravida de nostalgias...

Mas, tudo bem. Vamos colocar um curativo com mertiolate também em meu coração. Talvez funcione.
Finalmente cheguei em casa, e vou ter de passar a tarde toda sozinha. Ou melhor, com Hamlet. Mas ele anda meio triste, talvez esteja doente. Nem pula mais em mim quando chego. Meu pobre cão está envelhecendo...

Acho que vou almoçar e dormir.

Na cozinha, um universo de copos sujos, pratos com sobras de comida, e uma barata atordoada, desmaia perto da lixeira. Deve ter cheirado muita naftalina, coitada. Dou-lhe um golpe mortal com o solado do meu all star. Golpe de misericórdia.
Maravilha, não tem comida. Quando meu pai viaja, é sempre assim, tenho que me virar e como não sei nem fritar ovo, tenho que passar o dia à base de miojo. Então coloco água pra ferver, coloco o macarrão na panela, e o telefone toca.
Era meu pai. Me pergunta se está tudo bem, eu digo que sim, reclamo mais uma vez de sua repentina viagem, ele diz que é assim mesmo, que tenho que me acostumar, me pede pra comer direitinho, diz que está com saudades e desliga.
Colocar o telefone no gancho me deixou com um buraco no peito. Estou toda sensível hoje, e não gosto de ficar assim. Geralmente solidão não me incomoda, mas hoje é como se eu tivesse sido abandonada pelo mundo. Me sinto como se ninguém me amasse.
Almoço, me deito e fico pensando na noite que virá. Mais tarde irei à Casa Noturna tocar sax. Eu e minha banda de gente sem graça. Não sei por que continuo tocando com aquelas pessoas. No fundo, no fundo, toco sozinha, porque acho que eles são todos muito chatos. Pessoas individualistas e mesquinhas. E falsas. Pessoas de plástico. Odeio plástico.

domingo, setembro 18, 2011

Contos de vacas I

Era uma vez um lobo que queria ser mau. No fundo ele era até bonzinho, no entanto seu pai havia sido mau, seu avô também e seu tataravô já tinha até devorado uma velhinha inteira, sem mastigar!
Então o lobo queria ser mau, mais por obrigação do que por maldade inerente.

Mas o lobo não conseguia ser mau, porque ele era um lobo torto.
Tinha as orelhas tortas.
Tinha os olhos tortos.
Tinha o nariz torto.
Tinha a boca torta, os dentes tortos,o pescoço e as pernas.Tudo torto.
Todo mundo ria do lobo torto.

Um dia ele decidiu atravessar a floresta em busca da casa de uma velhinha que gostava de doces e tinha uma netinha que só usava roupas vermelhas. Ele pensou:

"Nem poderei assustar a menininha dizendo que minhas orellhas tortas servem para ouvi-la melhor; e que meus olhos tortos servem para vê-la melhor e que meu nariz torto serve para cheirá-la melhor e que meus dentes tortos servem para comê-la melhor. Meus ancestrais sempre se orgulharam tanto desse discurso! Mas ai de mim! Sou todo torto! Mas quem sabe eu não mate a menina de tanto  rir, assim, poderei devorá-la."
E povoado por pensamentos melancólicos, o lobo torto seguiu seu caminho.

Finalmente chegou à casa da vovó.
Ao olhar pela janela, viu que a velhinha e a menina vermelha tomavam chá e conversavam descontraidamente. Bateu na porta:

__ Quem é? __ Disse a menina.
__ O lobo mau! Aquele que pega as criancinhas pra fazer mingau!__Ele respondeu, tentando engrossar a voz.
__ Vovó! Acho que tem outro idiota lá fora tentanto passar trote! Que saco!__ Dizendo isso, abriu a porta.


Ao se deparar com aquele bichão todo disforme a menina não riu.Ficou tão comovida que começou a chorar.
O lobo, envergonhado, abaixou a cabeça, e chorou também.

Então, o tempo parou um pouquinho.Depois, o pouquinho virou eterno, com  direito a ter um fim, caso o tédio de deus fosse maior que sua vontade de descansar.

Uma fada, meio desorientada,passou por ali  e, sem querer, encostou a varinha de condão nos grossos pêlos do lobo torto.

Algumas eternidades depois, alguém descongelou o tempo.

As lágrimas do lobo, que tinham ficado brilhando na ponta do nariz, despencaram e penetraram a umidade da terra.
O lobo torto foi encolhendo, encolhendo, encolhendo, até se transformar num adorável cachorrinho de estimação.

segunda-feira, setembro 05, 2011

O monstro do armário IV


Marina e Cláudia estavam paradas diante da porta vermelho-sangue da sala que procuravam. Olhavam para o número 15 pintado com tinta preta, que já começava a desbotar.
 __ É aqui__ Disse Marina. O corredor estaria deserto se as duas não estivessem ali.
__ Este lugar é meio assustador. Melhor a gente ir andando... __ Disse Claudia, fingindo estar com medo.
__ Então, o que estamos esperando? __ Disse Marina, já fazendo o caminho inverso que tinham percorrido até chegar à sala quinze. Claudia fez o mesmo.
__ É impressão minha, ou você tem um leve sotaque? Tão leve que não consigo identificar de onde... __ Perguntou Marina.
Claudia respondeu sorrindo:
___ Sim, tenho um leve, muito leve sotaque. Eu morava do México, desde os primeiros meses de vida.
Marina estava admirada:
__Puxa, mas seu Português é perfeito!
Marina se explicou:
___Ah, sim... Isso porque minha mãe é daqui.  Em casa só falávamos Português. Ela sempre teve medo de esquecer a língua de seu país. Meu avô, pai dela é que é mexicano. Ele e minha avó viveram aqui durante muitos anos e aqui criaram minha mãe. Depois voltaram para o México. Minha mãe  ficou, e depois que engravidou de mim, resolveu ir para lá também.
Marina ouvia tudo atenta.
___ E seu pai? __ Arriscou perguntar, sem saber se deveria.
___ Meu pai sempre morou aqui. Estou na casa dele agora. Minha mãe estava muito chata, pegando demais no meu pé, então eu disse que queria vir pra cá. Ela não gostou da idéia, mas eu fiz muitas chantagens, tipo ficar sem comer, e comecei a me recusar a ir à escola também. No fim das contas, acho que ela concluiu que me mandar pra cá seria um alívio. E aqui estou.
Marina prestava atenção em cada palavra dita por Claudia. Enquanto isso olhava para seu rosto, comovida. Ela era sem dúvida, a garota mais bonita que já vira em toda a sua vida.
___ Você se jogaria de um penhasco por causa de um homem? __ A pergunta de Claudia atingiu Marina, que estava desprevenida, em cheio, como se um tijolo misterioso houvesse se esfarelado sobre sua cabeça, numa rua sem construções em andamento.  Ficou tonta novamente, e sua pele branca, quase transparente, ficou da cor da porta da sala 15. Respondeu gaguejando, diante do olhar fixo de Claudia:

__ Não! Quer dizer... Não sei, ou melhor... Acho que eu não me jogaria de um penhasco por ninguém. Você pularia?
__ Não, não... Detesto drama. Mas eu acho que pular por causa de um homem é burrice demais. Só isso.
Marina não teve coragem de perguntar qual era o problema que Claudia tinha com os homens. Chegou até a pensar que talvez ela fosse como sua falecida mãe: uma ativista feminista, que um dia usaria um homem só para engravidar, e depois o jogaria no lixo, como se ele fosse uma máquina de lavar estragada.
Elas já se encontravam próximas às grades dos portões eletrificados da escola secundária. Marina só percebeu que o tempo havia passado mais rápido do que sempre porque seu estômago roncou.

__ Bom, preciso ir. Tô morta de fome. __ Disse Marina. __ É bem provável que a gente se encontre amanhã, afinal, sua sala é do lado da minha.
As duas se abraçaram e se beijaram fraternalmente.
Claudia disse:
__ É, vai ser foda estar aqui às sete da manhã... No México a vida só começa depois da nove. Se não fosse o chato do meu pai eu não teria vindo hoje. Esse horário absurdo só pode ser coisa de padre. Não é possível!__ Disse sorrindo o sorriso mais lindo do mundo.
Marina ouviu aquele comentário com prazer.
Claudia já se afastava, olhando ainda para Marina, que permanecia de pé, encostada no portão da escola.
__ O que está desenhado?__ Marina perguntou com voz forte, para se fazer ouvir, já que a amiga já estava um pouco distante.
__ Desenhado onde? Claudia respondeu.
__ A tatuagem nas suas costas...
__Ah, ta. É uma loba.
__ Nossa, que agressivo! Marina sorria irônica.
__Nada... Ela é mansinha. Em vez de sangue, gosta de mel.

Ao dizer isso, acenou mais uma vez para Marina e parou de andar de costas, como vinha fazendo desde que havia sido questionada sobre a tatuagem.

Marina a viu desaparecer na esquina nublada. Ficou se lamentando por não ter tido a oportunidade de ver sua tatuagem e ficou imaginando como seria o desenho de uma loba viciada em mel. No dia seguinte pediria para ver. Sem querer, acabou se lembrando do garoto comedor de meleca que vira pela manhã desenhando pintos sob medida, para todos os gostos.
 Uma gota grossa de chuva caiu sobre seu nariz. As outras vieram juntas e fortes acompanhadas de um vento nervoso.
Marina correu sob a tempestade.

Ao chegar a casa foi saudada pelos latidinhos frenéticos e felizes de Hamlet. Como manifestação de carinho recebeu também um par de patas de cachorro, desenhadas com lama em seu uniforme encharcado.
Uma canção triste de violino ecoava. Por um momento, houve pausa na música, seguida do som da voz paterna:
__ Marina, você demorou hoje.
__Estive conversando com uma nova amiga__. Ela se explicou.
__ Seu almoço está na geladeira__ele disse, sem sair do quarto, e continuou sua canção.

Depois de tomar um banho bem quente, colocar roupas confortáveis e secas, Marina tentou almoçar, mas só então percebeu que havia perdido a fome. Comeu pouco e seguiu para seu quarto.
Ficou irritada com a presença de Hamlet que estava lá, deixando poças de lama por onde passava. Expulsou o cachorro do quarto a chineladas e palavrões. Deitou-se. Estava péssima. Sentia-se sozinha, seu cachorro havia emporcalhado tudo, estava com sono, não parava de pensar em Claudia. Vontade imensa de chorar. Ouviu ruídos estranhos vindos do armário. Detestava abrir aquela porta, porque tinha medo de encontrar lá o monstro das lendas infantis. Sabia que era bobagem, mas tinha medo. E medo é medo. Caminhou até o armário que ás vezes parecia um sarcófago. Abriu uma de suas portas. Duas baratas escandalosas copulavam no escuro. Ao serem surpreendidas, ficaram olhando para Marina por instantes, com cara de quem é pego no flagra fazendo coisa errada. Mas antes que Marina tivesse qualquer tipo de reação, as baratas abriram suas asas de seda cor de ferrugem e voaram pela janela. Marina correu para a cama, se masturbou pensando em Claudia, chorou e dormiu como uma pedra triste. A porta do armário estava aberta.


sexta-feira, agosto 12, 2011

O nascimento da tragédia no espírito da infância

I

Meus olhos percorriam um e-mail saturado de formalidades e se perdiam, hipnotizados pelos mega pixels da tela do computador, quando uma voz, cheia de doçura, de súbito, me pediu:
__ Moça, pega o Harry Potter pra mim?
Olhei para a menina parada a minha frente. Ela devia ter uns dez anos. Cabelos de caracol, olhos noturnos e tão magra, que flutuaria pelos ares, se o vento estivesse nervoso. “Mas essa sou há vinte anos”, pensei. A única diferença é que ela é rica e eu, na idade dela, era apenas um pássaro sujo, se alimentando de restos.
Rica, sim. Mora no prédio milionário que fica do outro lado da rua. Não obstante a fragilidade de suas formas dava para perceber que era uma menina bem alimentada. E a criança faminta que fui outrora se contorceu de inveja.
__ Você pega, moça? O Harry Potter? Tá muito alto, a estante é muito grandona.
__ Claro que pego!__respondi.__ Vamos lá!
Caminhamos juntas até a estante. A menina estava ansiosa e olhava para os livros com desejo. Perguntei:
__ Qual deles você quer?
__Todos__ Ela respondeu, gulosa.
Com um abraço, retirei a coleção de onde ela estava. Depositei os livros numa mesa, em direção a qual, minha versão infantil avançou faminta.
Depois de um tempo observando-a, arrisquei uma provocação. Queria mostrar outra coleção que, a meu ver, é bem mais legal e inteligente do que a do venerado Harry Potter.
__ Vem cá, quero te mostrar uns livros legais!
Ela me acompanhou curiosa. No caminho, me contou que já tinha lido todo o Harry Potter e que só estava matando saudades.
Chegamos ao nosso destino. Lá estava a coleção Desventuras em série, que sempre indico pra quem gosta de Harry Potter.
__ Ah, já li todos__ ela me disse, cheia de frustração.__ Não gostei, porque achei muito trágico.
__ Trágico? __ Perguntei surpreendida, diante daquela lucidez argumentativa.
__ É. E o mundo já é trágico demais. Prefiro ler Harry Potter.
Ficamos nos olhando em silêncio, por alguns instantes. E foi bruscamente que interrompi a conversa:
__ Então tá. Se precisar de mais alguma dica, é só me procurar.
Ela agradeceu e foi ler uma história do Batman.
Fiquei com um pouco de raiva: o que pode saber sobre tragédia, uma menina de dez anos de idade? Então, a bastilha das minhas pequenas tragédias infantis foi derrubada e tudo o que tinha lá dentro veio zunir no meu ouvido, com a impertinência do mais filho da puta pernilongo.

II
Quando eu tinha a idade dela talvez não soubesse nomear ainda muita coisa, principalmente as mais complexas. No entanto, naquele tempo eu era trágica e silenciosa.
Não perdi meus pais em um incêndio, não presenciei cenas sangrentas, ninguém se suicidou na minha frente. Mas havia os cães mortos, as histórias tristes e a terrível guerra que é a fome.
III

Dias atrás, eu soube que filhos de presos têm direito a uma bolsa de um salário mínimo e meio. Eles não têm culpa, não podem pagar pelos crimes do pai. Foi o pai que matou, estuprou, roubou, não eles. O meu pai não fez nada disso: ele trabalhou a vida inteira, carregando caixas pesadas nas costas, feito burro de carga. Não era criminoso, era alcoólatra e gastava parte considerável do dinheiro mirrado que recebia com seu vício; a outra parte, a que sobrava, ele não sabia administrar. Resultado: Fome, miséria e humilhação. E nada de bolsa alcoólatra trabalhador.
Dias e dias sem comer nada. Aos desmaios pelas ruas, eu sonhava com a casa de pão de mel da velha bruxa
.
IV
E é claro, anos depois, quando eu já era adulta, a cachaça acabou matando meu pai. Morte em Slow Motion. Que estranho vê-la agindo assim, tão lenta e perspicaz, como um gato se movendo na noite.

V
Na semana passada, alguém me lembrou que o dia dos pais estava próximo e eu disse que precisava comprar um presente, com urgência. Então, o alguém me olhou com uma cara esquisita, como se estivesse vendo uma pessoa doida. “Teu pai já morreu”, o alguém disse. “Eu sei, eu estava lá quando fecharam o caixão. Só que mamãe faz 70 anos nesta semana”, respondi.
No dia seguinte comprei o tal presente: um par de sandálias leves e confortáveis. Levei-as para mamãe.
Não serviram.
Não, não comprei números menores. Não, a numeração de seus pés também não mudou da noite para o dia.
Minha mãe estava com os pés enormes e feridos. Problemas de circulação sanguinea, associados a um pequeno acidente com uma pedra pesada.
Diante de tal visão, senti uma pontada forte de dor em um lugar em mim, nunca antes apunhalado.
“Minha querida magnólia branca, de raízes machucadas”, pensei.
Voltei para casa, escurecida. E foi em meio a um choro desamparado que telefonei para um médico.
“Que dramalhão mexicano”, é o que devem estar pensando meus leitores.
Que seja. Mas para mim, esses dias significaram a visita do pior dos monstros da minha infância: a ideia de perder minha mãe.

VI
Quando eu era criança tinha medo da sombra do eucalipto que tinha em frente à minha casa. Quando ventava forte nas noites de agosto, a projeção da imagem farfalhante das folhas da grande árvore no asfalto fazia lembrar um monstro malvado ou uma gigantesca alma penada.
Eu tinha mesmo era medo da noite: a noite da rua de casa, que era vazia e silenciosa e a noite da avenida próxima, com suas luzes e carros velozes, tão ameaçadores.
Na avenida, à noite, eu só circulava se tivesse meus dedos enroscados nos de meu pai, que me protegia das hostilidades e me dava o céu, num copo de guaraná.
Naquela época eu ficava pensando o que seria de mim se meus pais morressem. Como eu sobreviveria na noite? Como poderia enfrentá-la, atravessá-la sem que seus monstros me devorassem?
O tempo passou, meu pai morreu e eu saí de casa, deixando minha mãe na antiga rua do eucalipto-alma penada. Moro ainda no mesmo bairro, agora mais perto da avenida outrora hostil.
Transito freqüentemente por estes dois universos noturnos. Estou sempre sozinha, sem mãos de pai, sem guaraná com estrelas.
Um dia desses, enquanto transitava me senti tão só, que pensei: ” Meu deus, estou dentro do meu medo! Sozinha, na noite hostil do meu futuro!”

VII
Puxa vida! Como estou confessional hoje! Culpo os hormônios.
Se eu pudesse conversar agora com a pequena leitora que me falou de tragicidade como se fosse uma velha de oitenta, eu a aconselharia a comer muito chocolate, ler muito Harry Potter, antes que chegue ,inexorável, o tempo das mutilações.

quinta-feira, julho 07, 2011

O monstro do armário III


Após um momento fugaz de silêncio comovido, um som repentino de palmas encheu o salão.
Marina não sabia por que, mas se sentia um pouco tonta. Todos estavam de pé, mas ela se sentou para recuperar o equilíbrio e a respiração. A presença da tatuada havia provocado aquilo ou seria apenas uma indisposição por causa do desjejum tomado às pressas e de qualquer maneira, naquela manhã? Claro. Não havia comido direito. Uma presença desconhecida não podia incomodar tanto. Ainda mais de uma menina.

As pessoas se sentaram novamente. A palestra ia prosseguir. Então a tatuada perguntou,  sussurrando, a Marina:

__ Por acaso você sabe onde fica a sala 15?

O coração de Marina disparou de novo. A vertigem se insinuou novamente, mas um pouco mais leve. Meio gaguejando, ela respondeu:

__ Ao lado da sala 14.
__Bom, isso é meio óbvio. __ A tatuada falou, irônica. __ O problema é que não sei onde fica a sala 14 também. Na verdade não consegui encontrar o bloco de salas que vai da 10 à 20. __ Continuou.

Marina já se sentia um pouco melhor. Disse, então, sem gaguejar:

__ Desculpe. O I.E é muito grande mesmo. Só não fiquei perdida porque minhas aulas de música aconteciam aqui, então conheço muito bem o espaço. Na sala 13 está funcionado uma turma de segundo ano, na 14 , uma de primeiro,que é a minha e na 15 uma de terceiro.

__ É essa de terceiro que procuro. Passei os dois primeiros horários na sala errada, você acredita?
Marina não conseguia tirar olhos dos peitos da tatuada.
__ Ah, você é do terceiro ano... __ Comentou, tentando desviar seu olhar para o relógio, que agora começava a girar seus braços desesperadamente. “Tenho vários relógios”, pensou.

__ Sim, eu sou. Ah, meu nome é Cláudia, e o seu? ___ A tatuada perguntou.
__ Meu nome é Marina. Ah, assim que a palestra acabar te mostro onde é a sua sala, ta bom?
__ Combinado__ Disse Claudia, satisfeita.

Virginia já parecia cansada quando começou a falar de sua poetisa lírica preferida: Safo, de Lesbos:

__ Safo foi, sem dúvida, a maior poetisa lírica da antiguidade. Nasceu na ilha de Lesbos por volta do ano 612 a.C. Filha de aristocratas, teve acesso a bens culturais que as moças pobres não tinham: a dança e a poesia. Foi exilada duas vezes, uma em Pirra, outra na Sicília, pelo Ddtador Pítaco, por motivos políticos. Ao retornar a sua terra natal, teria fundado uma escola para moças, onde as ensinava poesia e dança. Alguns dizem que Safo possuía extraordinária beleza. Outros dizem que não possuía tantos atributos físicos assim. Mas, embora as opiniões a respeito de sua aparência sejam divergentes, sabe-se que encantava suas alunas, com sua poesia. Não demorou muito, muitas historias sobre outras práticas dentro da escola, além da poesia e da dança, começaram a surgir. A fama da escola como um lugar de lascívia entre mulheres começou a se espalhar.

Marina ouvia, atenta, o discurso de Virginia.
“Meu Deus, que papo mais estranho o dessa mulher”, pensava.

Virginia continuou:
__Havia uma aluna, Átis, que era a preferida de Safo. Quando seus pais souberam da má fama do estabelecimento de ensino, “trancaram a matrícula dela” e a levaram embora, fato que deixou Safo de coração partido. Foi daí que surgiu um dos mais belos poemas líricos de todos os tempos, chamado “adeus a Átis”, com o qual pretendo encerrar esta palestra. Mas antes há ainda algumas coisas a serem ditas a respeito dessa magnífica poetisa. Lendas e lendas foram contadas a seu respeito. Uma delas, do poeta Ovídio, diz que ela teria voltado a amar os homens. E ainda de acordo com Ovídio, sua morte teria sido provocada por um amor desse tipo: apaixonada por um marinheiro chamado Faon, e não sendo correspondida, Safo teria se atirado de um Rochedo em Leuca.

Cláudia, ao ouvir isso se revoltou:
__ Como assim? Pulou de um rochedo por causa de um homem? Duvido muito! Ainda mais depois de ter vivido amores tão intensos e diferentes como aqueles! Ela não seria capaz de voltar ao medíocre! Essa lenda só podia ter sido escrita por um homem mesmo! Não acredito.

Marina achou estranha aquela revolta toda, mas não disse nada.

Virginia prosseguiu:
_ No século XI a Igreja católica queimou toda sua obra, contida em nove volumes. Apenas no século XIX, alguns arqueólogos ingleses descobriram, em Oxorinco, sarcófagos envoltos em tiras de pergaminhos. Em umas dessas tiras estavam lá, legíveis, uns 600 versos de Safo. E é isso que restou dela para os leitores de hoje. Fragmentos.
Finalizo então com o poema que Safo fez para sua adorada Átis:

Adeus a Átis

Não minto: eu me queria morta.
Deixava-me desfeita em lágrimas:

“Mas, ah, que triste a nossa sina!
Eu vou contra a vontade, juro,
Safo”. “ Seja feliz”, eu disse,

“ E lembre-se de quanto a quero.
Ou já esqueceu? Pois vou lembrar-lhe
Os nossos momentos de amor.

Quantas grinaldas,no seu colo
__ Rosas, violetas, açafrão_.
Trançamos juntas! Multiflores

Colares atei para o tenro
Pescoço de Átis,os perfumes
Nos cabelos, os óleos raros
Da sua pele em minha pele
[...]

Cama macia, o amor nascia
De sua beleza e eu matava
A sua sede [...]

Cai a lua, caem as plêiades e
É meia-noite, o tempo passa e
Eu só,aqui deitada, desejante.

__Adolescência, adolescência,
Você se vai, aonde vai?
__ Não volto mais para você,
Para você não volto mais.


Tenham todos um bom dia!

Todos estavam de pé, aplaudindo Virginia. Ela realmente tinha um jeito especial de ler poemas, todos ficavam emocionados.

O auditório principal começava a ficar vazio. Marina e Claudia se levantaram e andaram em silêncio até a porta vermelha. Os olhos de Marina percorriam sutilmente e sem querer os contornos dos lábios de Cláudia, que disse:
__ Vamos, me mostre onde é minha sala.
Então as duas saíram apressadas pelos corredores. Marina andava quase correndo, como se estivesse fugindo de alguma coisa da qual ela tinha muito medo. O poema de Safo martelava em sua cabeça.


sábado, julho 02, 2011

O monstro do armário II


Era o início do ano letivo no Instituto Educacional. Marina cruzou ofegante, o amplo pátio da escola secundária. Seus olhos automaticamente se voltaram para o grande relógio fixado na parede verde acima da porta da diretoria. Sete horas e dez minutos. Estava atrasada. Sempre estava. Perguntava-se sempre quem teria sido o indivíduo que teria inventado esse horário absurdo para as aulas começarem. “Só pode ser coisa de padre”, pensou. “Coisa de gente que dorme cedo todo dia porque não tem mais nada de interessante para fazer”.
Ela mesma não conseguia dormir antes de meia-noite, por isso acordar tão cedo era um suplício.
Isso mesmo, um suplício. E acreditava que tudo fora planejado perversamente pelo padre do horário absurdo, só para que as pessoas comuns, como ela, que só dormem depois da meia-noite (porque ficaram vendo um filme legal, ou então lendo um livro pornográfico, ou sei lá, fazendo amor deliciosamente), sofressem, porque o prazer sempre foi um pecado mesmo, na concepção desses religiosos.
No momento em que amaldiçoava toda a congregação jesuíta e andava a passos largos, em direção à sala quatorze, esbarrando em outros alunos que provavelmente também estavam atrasados como ela, um cartaz cor laranja, colado em uma das paredes verdes do pátio, chamou sua atenção.
Marina diminuiu a velocidade de seus passos. Já estava atrasada mesmo, não faria muita diferença perder mais um minuto na leitura do tal cartaz. Aproximou-se e leu as letras salvadoras:




CONVITE

 O INSTITUTO EDUCACIONAL (I. E) TEM O PRAZER DE CONVIDAR A TODOS OS INTERESSADOS PARA A PALESTRA SOBRE “A IMPORTANCIA DO LIRISMO NOS DIAS ATUAIS”, A REALIZAR-SE NO DIA 3 DE FEVEREIRO DO ANO CORRENTE, ás 9;30h, EM NOSSO AUDITÓRIO PRINCIPAL.
A PALESTRANTE SERÁ VIRGÍNIA. L, PREMIADA POETA DA ATUALIDADE.
O PÚBLICO ALVO: TERCEIRO ANO DO ENSINO MÉDIO E TODOS Os INTERESSADOS EM POESIA.

CONTAMOS COM SUA PRESENÇA.

ATENCIOSAMENTE,

 A COORDENAÇÃO.

       Marina estava começando o primeiro ano ainda, mas julgou que não haveria problema trocar as duas últimas aulas de Física, matéria que detestava, pela palestra sobre poesia. Então seu primeiro dia de aula não seria tão penoso. Não poderia fugir das duas primeiras aulas de Biologia, mas, para compensar, mataria as de Física. Sem nenhum remorso. Tinha só quinze anos e se considerava muito responsável para tão pouca idade. Uma “matadinha” de aula de leve não faria mal ao seu caráter. Seu pai sempre dizia que o maior ato de irresponsabilidade dele tinha sido ter tido uma filha com apenas 20 anos, com uma mulher que ele nem conhecia. E que, no entanto, esse ato irresponsável tinha se transformado na maior alegria da vida dele. “Quem sabe”, ela pensava, “ eu não tenha a mesma sorte?”

Os dois primeiros horários, como já previra Marina, foram uma tortura chinesa. Ela contava os segundos, que pareciam girar num relógio diferente daquele onde olhara as horas pela manhã. O tempo havia parado. A professora de Biologia parecia falar uma língua estranha, tão amplo era seu vocabulário de palavras esquisitas. Um garoto, sentando perto de Marina, tirava melecas do nariz, com as quais fazia bolinhas, que arremessava nos cabelos louros de uma garota que tentava fazer as sobrancelhas olhando-se num minúsculo espelho. Uma formiga, lenta, como se estivesse sem uma das patas, subia, com sofrimento, pelos tornozelos de um garoto gordo, sentado à sua frente. “Coitada da formiga”, Marina pensava, “ não sabe onde está se enfiando”.

 Quando pensava no terrível destino da formiga desorientada, o sinal bateu. Estava alforriada. Não via a hora de ir para a palestra logo.

Ao se levantar, ainda pôde perceber que o garoto das bolinhas de meleca havia desistido de acertar seu alvo de madeixas tingidas de amarelo. Agora ele comia as bolinhas, enquanto desenhava pênis de todos os tamanhos, em uma folha de papel ofício amarrotada.

O auditório principal era gigantesco e estava quase lotado. Pouquíssimas poltronas permaneciam desocupadas. Marina teve a impressão de que a escola toda fugia das aulas dos últimos horários, porque não era possível que todo mundo estivesse interessado em um tema tão esquisito como o daquela palestra. As salas de aula deviam estar vazias. Mas, embora não estivesse se sentindo muito confortável no meio daquele monte de gente, pelo menos se sentia tranqüila: se fosse punida pela escapadela, não seria sozinha.
Virgínia. L, com os olhos brilhantes, falava, com uma voz quase masculina, que ecoava por todo o auditório, através das caixinhas de som, estrategicamente instaladas nas pilastras:

__ Quando falamos em poesia lírica, estamos nos referindo aos textos poéticos onde há subjetividade, ou seja, o que se lê nos textos líricos é uma visão pessoal, individualista do poeta,;são seus sentimentos que estão ali,escancarados, sua sensibilidade, seus segredos, seus medos. O mesmo não ocorre na poesia épica, uma vez que o objetivo desta é contar histórias, na maioria das vezes, histórias dos feitos heróicos de um povo. Há um afastamento do poeta em relação ao que escreve; o sentimento que predomina na épica é o orgulho do poeta de ser parte daquele povo cujo heroísmo ele canta. Mas, observem: é um sentimento que ele compartilha com os demais, é um sentimento coletivo. Não há espaço aqui para o individualismo...

Marina não desgrudava os olhos de Virgínia. Gostava de poesia desde pequena, quando seu pai lia versos para ela antes de dormir.
Depois de muito falar sobre o individualismo dos poetas líricos, sobre a proximidade entre poesia e música, sobre a lira, instrumento musical muito antigo que acompanhava os poemas líricos na antiguidade, Virginia se pôs a falar da morte, que, de acordo com ela, era um dos temas mais abordados em toda a lírica mundial, em todos os tempos:

__ Agora, gostaria de ler um poema do qual gosto muito. Chama-se “Esta é a graça” de Henriqueta Lisboa.

Ao dizer isso, abriu um livro tão espesso, que parecia conter todos os poemas do mundo, e começou a ler, com a voz muito grave:

__ “Esta é a graça dos pássaros:
Cantam enquanto esperam.
E nem ao menos sabem o que esperam.

Será porventura a morte, o amor?”

A música e o significado deste último verso ainda ecoavam nas caixinhas de som e nos ouvidos de Marina, quando a porta vermelha do auditório se abriu. Virginia continuava a leitura do poema, no entanto Marina não ouviu mais. Toda a sua atenção se voltou para a garota que havia entrado no salão. Ela era alta, tinha a pele bonita e cabelos compridos. Os olhos eram escuros como os cabelos. Ela usava jeans e camiseta. Havia um desenho tatuado em suas costas, mas Marina não conseguiu enxergá-lo, antes porque a garota ainda estava longe e o desenho era pequeno, e nem depois, no momento em que a tatuada se sentou ao seu lado, quase caindo em seu colo, porque os cabelos dela encobriram o desenho.


Todos esses movimentos, de pernas e quadris da tatuada e dos olhos de Marina duraram exatamente o tempo de leitura de quatro estrofes do poema que Virgínia declamava. Quando a tatuada finalmente se acomodou na poltrona ao lado, Virginia lia a última estrofe do poema, que Marina ouviu ainda um pouco perplexa:

__ E minha voz perdura neste concerto
Com a vibração e o temor de um violino
Pronto a estalar, em holocausto,
As próprias cordas_ demasiado tensas.

domingo, junho 26, 2011

Embalos de sábado à noite

Ontem: enquanto lia Proust, baixava os filmes do Tarkovsky que perdi  por causa de um Biziu no PC. Enchi a cara de batata frita industrializada e de cerveja puro malte(uma garrafa inteira de decepção).Comecei a ler o Jimmy Corrigan do Ware, mas desisti quando percebi que os quadrinhos estavam dançando valsa.Então ouvi três canções de cortar os pulsos, assisti um Kieślowski e depois adormeci como um bebê amamentado.

quarta-feira, junho 22, 2011

O monstro do armário




        Ainda não me acostumei a sangramentos. Me lembro do susto de minha primeira menstruação:   acredito que não fui a única menina do mundo que achou que ia morrer em segundos, ou que, incoerentemente, pensou ao mesmo tempo que a morte poderia ser lenta e dolorosa, com todo o sangue de meu corpo saindo em jatos pequenos, porém significantes, de minha boceta perplexa. Se falava tanto em menstruação na escola, mas eu sempre imaginava que aquilo era para as outras mulheres, não para mim. Como quando a gente pensa que só os outros morrem de câncer, eu jamais. Meio isso.
       Hoje cortei meu pulso com o espelho do armário. Foi bem cedinho, antes de sair pra Faculdade. O espelho estava meio embaçado, minha imagem parecia a de um fantasma, ou a de uma estranha de olheiras, aprisionada na neblina. Resolvi passar um paninho nele, pra ver se melhorava o aspecto da coisa e, consequentemente, meu aspecto também. Enquanto eu fazia isso, não percebi que um parafusinho se soltou, o espelho ficou bambo, e na hora que me abaixei para amarrar meu tênis, ele veio todo sobre minha cabeça. Só não rachei o côco, porque o protegi heroicamente com minha mão direita. Uma das pontas do espelho penetrou meu pulso. Saiu sangue. Muito.
       È claro eu fiquei a manhã inteira me sentido ofendida. Como se tivesse levado uma surra injustamente.
       Papai não estava em casa, viajou ontem à noite com a orquestra sinfônica. Só fiquei sabendo disso porque, na hora do acidente, corri pro quarto dele e constatei decepcionada, que o violino não estava lá. Depois de ter cuidado, eu mesma, de meu ferimento, soube formalmente, através de um bilhete de geladeira, que ele iria passar o fim de semana todo fora, fazendo apresentações em cidadezinhas interioranas.
        Às vezes sinto falta de uma mãe. Mas a minha parecia meio louca, então talvez seja melhor não ter uma mesmo. No meu quarto tem uma foto dela e de papai juntos: foi tirada na noite em que me fizeram. Eles nem se conheciam e nem se conheceram depois. Explico-me: minha mãe era uma ativista do movimento feminista. Detestava homens. Só queria um filho, ou melhor, uma filha, no entanto era pobre para ter acesso a essas modernidades da medicina, tipo inseminação artificial e tal, então precisava de um homem bonito para executar seus planos. Ficou sabendo, através de amigas intelectuais como ela, que na orquestra sinfônica tinha um tal de Robson, rapaz de 19 anos, corpo atlético, excelente músico e com cara de bobo inteligente. Minha mãe se interessou. No dia da grande apresentação da orquestra, seduziu meu pai e engravidou de mim. Quando eu nasci, meu pai até tentou aproximação, mas minha mãe era muito arredia e não queria mesmo saber dos homens. Só que morreu meses depois e minha avó, mãe da minha mãe, que era também muito pobre e já tinha mais de 70 anos, procurou meu pai e me deixou com ele.
        Na foto tirada no dia em que fui feita, minha mãe aparece com uma camiseta surrada, calças jeans também surradas, cabelo muito curto e vermelho e os olhos que herdei, cinzentos como os dos cães do gelo. Meu pai, de violino na mão, sorri para a câmera, seu sorriso de bobo inteligente. Os olhos dele sempre me pareceram trechos curtos de uma floresta antiga, tão verdes, como são, em meus pensamentos, as sinfonias que ele tocava para me fazer dormir, quando eu era apenas uma coisa careca e sem dentes, cheia de medo do mundo.
        Vinte anos depois, aqui estou com bastante cabelo vermelho na cabeça. Cabeleira que corto periodicamente, porque detesto ficar parecendo crente, com cabelão na cintura me incomodando no calor. Além dos olhos cinzentos e do gosto por cabelos curtos, ainda herdei de minha mãe louca uma pele muito branca, quase transparente. Não me pareço nada com meu pai. Talvez eu tenha também uma cara de boba inteligente, mas pode ser a convivência. Há entre nós uma semelhança, mas não física: assim, como ele, adoro música. Ele queria que eu tocasse piano, mas há uns bons anos atrás, me apaixonei pelo sax. Então essa semelhança acabou se tornando um contraponto entre nós: meu pai clássico, eu totalmente pop.
        Mas convivemos bem com essa semelhança / diferença. Às vezes ele toca no quarto dele, solitário, suas notas melancólicas, em seu violino impecavelmente afinado; e eu, também toco no meu quarto, meu saxofone apaixonado, soprando as notas para seu interior, como se a musica nascesse de dentro de mim e provocasse tamanha inquietude e assombro, que eu precisasse expeli-la, para dentro de outro ser, de preferência inanimado, que não estivesse em constante perigo de explosão, como eu.

        Meu pai anda estranho ultimamente. Me disse que tem algo para me contar, mas está cheio de rodeios. Disse que me ama muito e que está com medo do efeito que o que ele vai falar poderá provocar. Mas tudo bem. Ele sempre foi meio excêntrico mesmo. Não acredito que seja nada demais. Só me resta esperar.
        Gosto muito de andar de metrô nesse horário. È vazio, dá pra ir sentada, dá pra olhar pela janela e pensar na vida, enquanto as imagens se despedaçam lá fora. Gosto muito também desses dias nublados e frios. Nem parece que estou nos trópicos. Devo ter a alma européia.
        As pessoas devem estar achando que sou uma suicida. Não é agradável ficar circulando por aí com esse curativo no pulso. Na faculdade me encheram o saco, ficaram me perguntando o que houve comigo, e mesmo eu tendo de repetir a historia um milhão de vezes, parecia que eu estava inventando. Os colegas não pareciam convencidos. Alguns idiotas me disseram que ando lendo Cioran demais e que isso pode não estar me fazendo bem. Acho Cioran pesado, o máximo de pessimismo que consigo suportar é Schopenhauer. Na verdade, aqueles babacas só falaram de Cioran pra dizer que são cultos e que são os nerds da Filosofia. Ai que preguiça.
        Aquele espelho desabando na minha cabeça hoje de manhã acabou azedando bastante o meu humor. E a Faculdade também. E as pessoas de lá. E as paredes da biblioteca, entre as quais fui obrigada a devorar páginas e páginas sobre Platão, nos dois primeiros horários, para dar conta de uma prova indigesta nos dois últimos.
Ainda bem que estou aqui, no metrô, longe de lá. O ferimento dói ainda. Fisgadas.
        E meu grande problema hoje não é apenas essa dor. O meu grande problema hoje é que essa dor me fez lembrar de outra, que tenho tentado anestesiar em vão, há anos...

        Hoje acordei pensado em Cláudia. Febrilmente.  E posso garantir que isso dói mais que um pulso cortado. Não cicatriza, nessa ferida não nasce casca. Ela foi embora há quatro anos e me engano, sei que me engano, quando acho que a esqueci, depois de uma noite com algum cara idiota, depois de algum porre universitário, depois de me enclausurar por horas em bibliotecas ou no meu quarto, escrevendo artigos e mais artigos acadêmicos. Como uma mulher pôde espalhar tantos rastros de pólvora assim em minha vida tão pacata de colegial? Por que sucumbi diante de seu olhar letal e de seu corpo moreno que massacrava o meu em nossas mais úmidas tardes, quando nos pedíamos sem trégua, e nos dávamos, tremendo de medo e de tesão, nos labirintos dos meus lençóis amarrotados? Não houve garotas depois dela.  Alguns garotos esporádicos, nas festas de faculdade. Eles me fazem, momentaneamente, me livrar de mim. Como alguém, que, em horas alcoólicas, acha que é feliz, mas depois, no dia seguinte, é obrigado a enfrentar a ressaca, ácida, como o vômito que se despeja na privada.
        Que espécie de encantamento havia naquela saliva morna que me untava o corpo, que se misturava aos calores lascivos de minha boceta molhada?
        Dói. Mais do que um pulso ferido por um espelho embaçado que faz com que eu me sinta, ao me ver refletida, como alguém que já morreu, cujo fantasma acena tristemente através da cerração.

Eu tinha 15 anos. Era uma palestra, na escola, sobre a poesia lírica. Eu olhava, fascinada para a palestrante, que lia efusivos versos líricos de poetas renomados. Foi quando Cláudia entrou no auditório. Era a primeira vez que eu a via.
Mas, por Deus...
Ainda não me acostumei  aos sangramentos...

( continua...)

sexta-feira, junho 17, 2011

Para Mário Quintana

 Cabelo

Cabelo é o fio dental dos dentes do pente.

domingo, maio 22, 2011

Macumba on-line



Faltam dez minutos para as 8 horas da manhã. Como acontece todos os dias, reduzo a marcha na Bahia com Contorno: paro o carro lentamente diante da imposição vermelha do semáforo à frente. Nunca passo direto por esse cruzamento.

Aqui, todas as manhãs, coleciono desgraças. Desgraças dos outros, o que não é bom, mas, em todo caso, seria pior se fossem minhas.
Explico-me: é que o trecho é local de trabalho de pelo menos três vendedores de jornais sensacionalistas, desses que todo mundo lê nos ônibus e no metrô, a caminho do trabalho, a fim de se inteirar sobre as desgraças do dia. Então é sempre assim: levanto os olhos e leio: “ESFOLADA VIVA”, ou, “ESTUPRADA, ESFAQUEADA E ABANDONADA EM MATAGAL” e ainda: “MATOU NAMORADA E PULOU DO PRÉDIO”, tudo isso grafado na mais sanguinea caixa alta, certamente para despertar nosso animal interior, ou talvez para aguçar nossa fome predatória, o nosso tão paradoxal fascínio pela violência.
Já cheguei ao ponto de fechar os olhos, nesse momento de parada obrigatória, e imaginar qual seria o infortúnio ou a catástrofe do dia. Então fico inventando os mais grotescos crimes e resumindo-os em manchetes; desço ao mais torpe instinto violento de que o ser humano é capaz e redijo sórdidas notícias mentais. Enfim, abro os olhos e, antes de arrancar, constato alarmada, que a vida real é muito mais terrível. Sim, a vida real é muito, muito mais terrível.

Depois de 20 minutos tentando estacionar, chego ao trabalho. E, de novo, o jornalzinho mais lido pelos belo horizontinos me persegue. Dessa vez acontece assim: surpreendo o vigia às gargalhadas, com um exemplar nas mãos. Ele ri e alterna seus quase soluços com a palavra “estúpida”. É lógico que fico praticamente morta de curiosidade, e quero rir também, porque, como é de conhecimento de todos, rir faz bem, assim como cantar, para espantar nossos males. (Risadas, cantoria e quem sabe, de quando em vez, uma fumacinha cheirosa de incenso, nos ambientes mais pesados).
Ele estende uma das mãos para mim (a outra se ocupa em desfazer as lágrimas resultantes do momento feliz). Na mão estendida está o tal jornalzinho e lá, num pedacinho de umas das páginas, a notícia que provocara a crise de riso.

Não chegava a ser uma desgraça. Na verdade, era uma quase desgraça. Eis a manchete: “NOIVA TENTA SE MATAR, MAS VESTIDO NÃO DEIXA”.
Foi assim que as coisas aconteceram, segundo o jornal: uma moça chinesa, de 22 anos, tinha um noivo, ao qual devia amar muito. Mas, como tudo nessa vida é fugaz, o romance entre os dois acabou. A pobre coitada  já tinha até comprado a indumentária para o casamento, um belíssimo vestido de noiva, com o qual, numa atitude de desespero e revolta, se fantasiou e saltou para a morte, partindo do sétimo andar de um prédio. Só que o vestido dela ficou pendurado nas grades da janela e a chinesinha ficou pendurada junto. Após isso foi resgatada com sucesso, não sem chamar a atenção dos transeuntes, que estavam lá embaixo rindo muito, filmando e fotografando tudo.
Minha primeira reação foi rir descaradamente. “Que corpo leve!”, pensei. “Que tecido resistente!”, repensei. “Que estúpida”. Concluí.
E, de repente, parei de rir. É que olhando bem para a fotografia que acompanhava a notícia, quase descobri um mistério; alguma coisa obtusa estava ali, tentando me seduzir. Então me dei conta de que aquela mulher de vestido esvoaçante pendurada numa janela transubstanciara-se em rosa recém brotada milagrosamente do concreto, sob um sol oriental. Flor selvagem, suicida, pendendo para o vazio. Ela resplandecia, flutuando , trágica, no fracasso de sua quase queda.
Eu  juro que não queria pensar sobre o futuro da rosa. Já seria demasiado triste refletir sobre sua solidão passada. Pior ainda pensar na dor que virá.

Mas,no fim do dia,tal pensamento se impôs. Ao ligar o computador me deparei com o seguinte anúncio: “Macumba on-line, experimente!” Adeus, ó aventura- da galinha- preta- com cachaça- e vela vermelha- na encruzilhada- meia-noite! O lado bom da coisa foi pensar nas repercussões positivas dessa “revolução tecnológica” no futuro da moça chinesa que, depois de muito sangrar, provavelmente metamorfosear-se-á em pétala vingativa.Se tal momento triunfante chegar, suas delicadas mãos de porcelana não precisarão nem costurar a gosmenta boca do sapo.
Bastará um clic no mouse.

quarta-feira, maio 04, 2011

Camila e outros bichos

             O meu amor pelos animais começou muito cedo, quando eu ainda era bem criança. Onde morávamos havia um milharal onde os gatos se multiplicavam. A cada dia surgiam novos bebês gato, que atraiam a atenção de nossos olhos espantados.
Quando eu tinha quatro anos nos mudamos para o bairro onde passei o resto de minha infância e lá não foi diferente: rapidamente meu irmão transformou nossa área de serviço  em um verdadeiro zoológico.
           Tudo começou com a Lassie. Era uma fofura quando nos foi apresentada. Pequena, gorducha e dona dos pelos negros mais brilhantes que já vi... enfim, uma beleza de vira-latas. Foi difícil convencer  a mamãe de deixar a linda cadelinha ficar, mas depois que me irmão e eu ameaçamos incendiar a casa, ela acabou cedendo. Lassie cresceu e se tornou uma grande companheira.
           Depois de sua vinda, chegamos à conclusão de que ela precisava de uma amiga. A partir de então muitos outros cães foram trazidos por meu irmão. Ele se comovia ao ver os pobres animais abandonados nas ruas e os adotava. Dessa forma, chegamos à surpreendente marca de doze cães. Doze cães, muito vivos e comilões! Ainda bem que todos viviam na mais perfeita harmonia com Lassie, nossa querida primogênita. Muitos adoeciam e morriam e outros eram trazidos. Perdi a conta de quantas Xuxas e paquitas tivemos...
            Havia também uma coleção de pombos. Eram muitos os viveiros espalhados pela área de serviço. Havia lindos pombos-correio e meu irmão, como talentoso comerciante mirim, sempre os vendia por um preço mais elevado. E os passarinhos? Eram muitos... canários, periquitos, pardais... armávamos alçapões sobre o telhado para apanharmos pardais! Depois, ao vê-los presos, eu me entristecia. Pobres passarinhos impossibiitados de voar! Mas eu nada podia fazer, apenas colaborar para que permanecessem encarcerados. Deveria viagiá-los, se não o fizesse, meu irmão me enchia de tabefes. Deveria também arrancar as penas das asas dos pombos para que pudessem andar pela área sem fugir.
             Mas não acaba aqui. Havia os macacos. Isso mesmo, os macacos. Eram micos,destes que povoam as árvores de nosso parques municipais. Tivemos muitos deles. Acredito que não há bichos tão estressados quanto os micos. Eles faziam muito barulho, pulavam demasiadamente e balançavam tanto as gaiolas que elas chegavam a oscilar. E coitado de quem se atrevesse  a colocar os dedos entre as grades do viveiro... Meus dedinhos eram repletos de furos: os dentes dos macacos eram muito afiados e eu não tinha mesmo vergonha. Não aprendia nunca.
           Eu gostava muito das tartarugas. Tínhamos de todos os tamanhos:algumas cabiam na palma da mão, outras eram tão gigantescas, que até assustavam. As menores gostavam de subir pelas paredes e ficavam lá por muito tempo. As grandes nem se moviam. Ficavam em um cantinho, com cara de quem está carregando o peso do mundo nas costas. Eu adora fazer festinha para uma delas, a Maior de Todas. Quase todos os dias, uma de minhas amiguinhas da escola ia lá pra casa me ajudar. Preparávamos o refresco, os biscoitos e até coroávamos Maior de Todas. Depois cantávamos e devorávamos o lanche. No fim da tarde minha amiga  voltava para casa e eu ficava como lanche dela todo pra mim.
            Tivemos poucos coelhos.Os pequenos foram assassinados pelos cães. O grande,chamado Juba, numa triste época de privações, foi assassinado por mamãe. Tornou-se um delicioso ensopado e parte do de dentro de cada um de nós.
             Ah.... Eu não poderia me esquecer dos filhotes de rato que meu irmão encontrou não sei onde! Imaginem que ele os estava criando dentro do forno! Até que mamãe os  descobriu e esmagou todos com o salto do sapato.
        Cães, pombos, pássaros, tartarugas, coelhos.... eram mesmo muitos bichos para uma área de serviço tão pequena...
              E havia os gatos. Foram muitos,mas lembro-me, com nitidez, de apenas três: Chaninho, Robozinho, e a Belíssima Camila.
              Chaninho foi o primeiro. Viveu conosco durante muito tempo, e então desapareceu. Ficamos deprimidíssimos. Depois de um ano, para a nossa surpresa, ele retornou. Estava muito magro e mancava. Eu me aproximei, cheia de alegria e de saudades e o resultado foi a marca de três afiadíssimas unhas em meu braço direito. Parece que não fui reconhecida. Ele estava diferente, era outro. Gatos também perdem  memória? Aquele havia perdido, e fico pensando em seu sofrimento, tentando se lembrar de sua casa, do caminho que o conduziria até lá. Pobre Chaninho! Em sua confusão mental, deve ter me confundido  com os seres  que o espancaram, pelo prazer da mais gratuita covardia. Depois ele foi embora de novo, e um dia o vimos grudado no asfalto da  rua dos Eucalíptos. Trágico fim.


      Robozinho era um filhote. Era um dos quinze gatos que habitavam o nosso zoológico. Eu não me interessava muito por ele até que,em uma das minhas tardes de solidão, o vi cair da escada da sala. Abandonei meus livros, meus brinquedos e meus amigos invisíveis e corri em sua direção. Estava morrendo. E eu , que nada podia fazer,assiti a sua morte. Foi durante a agonia que lhe dei nome. Morreu na boca da noite e  chorei como uma idiota.
          Eu gostaria de saber por que os gatos são tão enigmáticos.Eles têm algo de místico, seus olhos parecem portadores de grandes mistérios. São tão sensuais... e às vezes nos fitam como se conhecessem os nossos segredos. Minha infância não teria sido a mesma se eles não estivessem sempre por perto, como entes mágicos, ou simplesmente como bons ouvintes de meus monólogos infantis.
           A Camila foi especial. Assim como a Lassie, ela chegou em nossa casa ainda pequenina, era linda e quando cresceu, ficou mais bela. Seus pelos esverdeados tinham listras pretas. Nunca vi gata mais elegante. Ela me acompanhava sempre  por todos os lugares. As pessoas gostavam dela, principalmente, as crianças. Eu costumava passar tardes inteiras explorando um terreno baldio  que existia em frente à minha casa. Os vizinhos depositavam lá livros velhos e brinquedos estragados. Mas o que não era mais útil para eles para mim era motivo para festejar: encontrar um livro ou brinquedo me deixava muito feliz. Camila estava sempre comigo. O lote vago também dava acesso aos muros das casas dos meus melhores amigos: Bruno e Sandrinha. Eu sempre encontrava um ou outro e conversávamos por horas.... O assunto? Nem me lembro mais. Só me lembro que morríamos de medo do fim do mundo.

         Foi numa tarde de inverno que Camila morreu. Foi o dia mais frio do ano, e o céu estava cincento. Eu estava feliz,afinal, tinha encontrado uma moeda de cinquenta cruzeiros no caminho da escola. Eu brincava com um velotrol e atirava pedras em calangos, enquanto meu irmão e os outros meninos jogavam bola perto da calçada onde Camila dormia. Uma moto enlouquecida surgiu no início da rua, passou velozmente por todos e a atingiu. A gata correu para o lote vago. Todos interromperam a brincadeira e a seguiram. Lá estava ela, olhos arregalados de medo, sob uma árvore seca.
          Cena triste aquela, do ser amado se debatendo de morte.
        A levamos para casa e tentamos, inutilmente, reanimá-la, aspergindo-lhe água sobre a cabeça.
         Fizemos uma espécie de cortejo fúnebre para enterrá-la. Voltamos para o terreno baldio, perfuramos o chão com uma faca de pão, e no buraco raso depositamos o corpo morto do adorado felino.
        Dias depois, fui visitar seu túmulo: a terra não havia suportado seu  inchaço. O corpo, desprovido de todo veludo, estava exposto,  se desfazendo. Voltei ali todos os dias, como num ritual, e assiti , com gravidade, a todo o processo. Havia em meus lábios, um áspero gosto de fim.
       Durante muito tempo sonhei com Camila. Em meus devaneios noturnos ela aparecia e me olhava  de um jeito estranho. E o esquisito é que nos sonhos a aparição se dava justamente no lugar onde eu havia encontrado os cinquenta cruzeiros. Seria meu coração me avisando que dali para frente  minha vida sempre oscilaria nesse terrível contraponto  do  ganhar e do perder?

     Até hoje me lembro do cheiro do sabonte que estava em nosso banheiro no dia em que Camila morreu.

     Visitei um zoológico pela primeira vez quando tinha dezenove anos. Meus amigos estranharam quando eu disse que nunca havia estado ali antes, afinal, toda criança já fez semelhante visita pelo menos uma vez na vida.
    Eu sorri e me lembrei de Camila e dos outros bichos. Para quê ir ao zoológico, se ele está em casa, em nossa área de serviço?
      Não tive muitos amigos quando criança, mas tive gatos, cachorros, tartarugas... e para mim foi o suficiente.  
       Fui feliz.