domingo, junho 26, 2011

Embalos de sábado à noite

Ontem: enquanto lia Proust, baixava os filmes do Tarkovsky que perdi  por causa de um Biziu no PC. Enchi a cara de batata frita industrializada e de cerveja puro malte(uma garrafa inteira de decepção).Comecei a ler o Jimmy Corrigan do Ware, mas desisti quando percebi que os quadrinhos estavam dançando valsa.Então ouvi três canções de cortar os pulsos, assisti um Kieślowski e depois adormeci como um bebê amamentado.

quarta-feira, junho 22, 2011

O monstro do armário




        Ainda não me acostumei a sangramentos. Me lembro do susto de minha primeira menstruação:   acredito que não fui a única menina do mundo que achou que ia morrer em segundos, ou que, incoerentemente, pensou ao mesmo tempo que a morte poderia ser lenta e dolorosa, com todo o sangue de meu corpo saindo em jatos pequenos, porém significantes, de minha boceta perplexa. Se falava tanto em menstruação na escola, mas eu sempre imaginava que aquilo era para as outras mulheres, não para mim. Como quando a gente pensa que só os outros morrem de câncer, eu jamais. Meio isso.
       Hoje cortei meu pulso com o espelho do armário. Foi bem cedinho, antes de sair pra Faculdade. O espelho estava meio embaçado, minha imagem parecia a de um fantasma, ou a de uma estranha de olheiras, aprisionada na neblina. Resolvi passar um paninho nele, pra ver se melhorava o aspecto da coisa e, consequentemente, meu aspecto também. Enquanto eu fazia isso, não percebi que um parafusinho se soltou, o espelho ficou bambo, e na hora que me abaixei para amarrar meu tênis, ele veio todo sobre minha cabeça. Só não rachei o côco, porque o protegi heroicamente com minha mão direita. Uma das pontas do espelho penetrou meu pulso. Saiu sangue. Muito.
       È claro eu fiquei a manhã inteira me sentido ofendida. Como se tivesse levado uma surra injustamente.
       Papai não estava em casa, viajou ontem à noite com a orquestra sinfônica. Só fiquei sabendo disso porque, na hora do acidente, corri pro quarto dele e constatei decepcionada, que o violino não estava lá. Depois de ter cuidado, eu mesma, de meu ferimento, soube formalmente, através de um bilhete de geladeira, que ele iria passar o fim de semana todo fora, fazendo apresentações em cidadezinhas interioranas.
        Às vezes sinto falta de uma mãe. Mas a minha parecia meio louca, então talvez seja melhor não ter uma mesmo. No meu quarto tem uma foto dela e de papai juntos: foi tirada na noite em que me fizeram. Eles nem se conheciam e nem se conheceram depois. Explico-me: minha mãe era uma ativista do movimento feminista. Detestava homens. Só queria um filho, ou melhor, uma filha, no entanto era pobre para ter acesso a essas modernidades da medicina, tipo inseminação artificial e tal, então precisava de um homem bonito para executar seus planos. Ficou sabendo, através de amigas intelectuais como ela, que na orquestra sinfônica tinha um tal de Robson, rapaz de 19 anos, corpo atlético, excelente músico e com cara de bobo inteligente. Minha mãe se interessou. No dia da grande apresentação da orquestra, seduziu meu pai e engravidou de mim. Quando eu nasci, meu pai até tentou aproximação, mas minha mãe era muito arredia e não queria mesmo saber dos homens. Só que morreu meses depois e minha avó, mãe da minha mãe, que era também muito pobre e já tinha mais de 70 anos, procurou meu pai e me deixou com ele.
        Na foto tirada no dia em que fui feita, minha mãe aparece com uma camiseta surrada, calças jeans também surradas, cabelo muito curto e vermelho e os olhos que herdei, cinzentos como os dos cães do gelo. Meu pai, de violino na mão, sorri para a câmera, seu sorriso de bobo inteligente. Os olhos dele sempre me pareceram trechos curtos de uma floresta antiga, tão verdes, como são, em meus pensamentos, as sinfonias que ele tocava para me fazer dormir, quando eu era apenas uma coisa careca e sem dentes, cheia de medo do mundo.
        Vinte anos depois, aqui estou com bastante cabelo vermelho na cabeça. Cabeleira que corto periodicamente, porque detesto ficar parecendo crente, com cabelão na cintura me incomodando no calor. Além dos olhos cinzentos e do gosto por cabelos curtos, ainda herdei de minha mãe louca uma pele muito branca, quase transparente. Não me pareço nada com meu pai. Talvez eu tenha também uma cara de boba inteligente, mas pode ser a convivência. Há entre nós uma semelhança, mas não física: assim, como ele, adoro música. Ele queria que eu tocasse piano, mas há uns bons anos atrás, me apaixonei pelo sax. Então essa semelhança acabou se tornando um contraponto entre nós: meu pai clássico, eu totalmente pop.
        Mas convivemos bem com essa semelhança / diferença. Às vezes ele toca no quarto dele, solitário, suas notas melancólicas, em seu violino impecavelmente afinado; e eu, também toco no meu quarto, meu saxofone apaixonado, soprando as notas para seu interior, como se a musica nascesse de dentro de mim e provocasse tamanha inquietude e assombro, que eu precisasse expeli-la, para dentro de outro ser, de preferência inanimado, que não estivesse em constante perigo de explosão, como eu.

        Meu pai anda estranho ultimamente. Me disse que tem algo para me contar, mas está cheio de rodeios. Disse que me ama muito e que está com medo do efeito que o que ele vai falar poderá provocar. Mas tudo bem. Ele sempre foi meio excêntrico mesmo. Não acredito que seja nada demais. Só me resta esperar.
        Gosto muito de andar de metrô nesse horário. È vazio, dá pra ir sentada, dá pra olhar pela janela e pensar na vida, enquanto as imagens se despedaçam lá fora. Gosto muito também desses dias nublados e frios. Nem parece que estou nos trópicos. Devo ter a alma européia.
        As pessoas devem estar achando que sou uma suicida. Não é agradável ficar circulando por aí com esse curativo no pulso. Na faculdade me encheram o saco, ficaram me perguntando o que houve comigo, e mesmo eu tendo de repetir a historia um milhão de vezes, parecia que eu estava inventando. Os colegas não pareciam convencidos. Alguns idiotas me disseram que ando lendo Cioran demais e que isso pode não estar me fazendo bem. Acho Cioran pesado, o máximo de pessimismo que consigo suportar é Schopenhauer. Na verdade, aqueles babacas só falaram de Cioran pra dizer que são cultos e que são os nerds da Filosofia. Ai que preguiça.
        Aquele espelho desabando na minha cabeça hoje de manhã acabou azedando bastante o meu humor. E a Faculdade também. E as pessoas de lá. E as paredes da biblioteca, entre as quais fui obrigada a devorar páginas e páginas sobre Platão, nos dois primeiros horários, para dar conta de uma prova indigesta nos dois últimos.
Ainda bem que estou aqui, no metrô, longe de lá. O ferimento dói ainda. Fisgadas.
        E meu grande problema hoje não é apenas essa dor. O meu grande problema hoje é que essa dor me fez lembrar de outra, que tenho tentado anestesiar em vão, há anos...

        Hoje acordei pensado em Cláudia. Febrilmente.  E posso garantir que isso dói mais que um pulso cortado. Não cicatriza, nessa ferida não nasce casca. Ela foi embora há quatro anos e me engano, sei que me engano, quando acho que a esqueci, depois de uma noite com algum cara idiota, depois de algum porre universitário, depois de me enclausurar por horas em bibliotecas ou no meu quarto, escrevendo artigos e mais artigos acadêmicos. Como uma mulher pôde espalhar tantos rastros de pólvora assim em minha vida tão pacata de colegial? Por que sucumbi diante de seu olhar letal e de seu corpo moreno que massacrava o meu em nossas mais úmidas tardes, quando nos pedíamos sem trégua, e nos dávamos, tremendo de medo e de tesão, nos labirintos dos meus lençóis amarrotados? Não houve garotas depois dela.  Alguns garotos esporádicos, nas festas de faculdade. Eles me fazem, momentaneamente, me livrar de mim. Como alguém, que, em horas alcoólicas, acha que é feliz, mas depois, no dia seguinte, é obrigado a enfrentar a ressaca, ácida, como o vômito que se despeja na privada.
        Que espécie de encantamento havia naquela saliva morna que me untava o corpo, que se misturava aos calores lascivos de minha boceta molhada?
        Dói. Mais do que um pulso ferido por um espelho embaçado que faz com que eu me sinta, ao me ver refletida, como alguém que já morreu, cujo fantasma acena tristemente através da cerração.

Eu tinha 15 anos. Era uma palestra, na escola, sobre a poesia lírica. Eu olhava, fascinada para a palestrante, que lia efusivos versos líricos de poetas renomados. Foi quando Cláudia entrou no auditório. Era a primeira vez que eu a via.
Mas, por Deus...
Ainda não me acostumei  aos sangramentos...

( continua...)

sexta-feira, junho 17, 2011

Para Mário Quintana

 Cabelo

Cabelo é o fio dental dos dentes do pente.