sexta-feira, setembro 23, 2011

O monstro do armário VI



“Que cara inchada é essa, Marina?” Me pergunta o idiota do Lu. Indivíduo mais babaca. Se acha o rei do contrabaixo, e o homem mais lindo de toda Belo Horizonte. È um dos integrantes de plástico da minha banda de plástico. E me disse essa gracinha sem graça, só porque estava perto de uma garota de peitos grandes, que provavelmente daria pra ele no fim do expediente. Os outros nem me cumprimentaram. Reclamaram do meu pequeno atraso de 30 minutos, dizendo que eu estava comprometendo o trabalho deles, e que se não quisesse continuar tocando, iriam contratar outra saxofonista. Como não queria me aborrecer mais uma vez, fiquei calada.
Fizemos nosso showzinho medíocre de quinta-feira, na mesmice de sempre: Luzes de boate, fumaça de cigarro, casais no cio, bandejas de garçons flutuando sobre cabeças chacoalhantes que ficavam escuras e coloridas alternadamente. E eu ficando enjoada de tudo, de vez em quando, e me refugiando atrás da escuridão de meus olhos fechados. E soprando meu sax, com toda a paixão de meu espírito inquieto.
Às vezes, algum cara babão ficava me olhando com uma cara esquisita, achando que estava fazendo uma expressão sedutora. Uma cara ridícula de demente. Então eu fechava os olhos mais forte ainda, e tentava me concentrar na minha música. Quando eu abria os olhos, o cara babão já estava lá, enfiando a língua dele na boca de alguma garota de saia curta.
       A música sempre foi minha salvação.
Depois do expediente, o pessoal sempre fica numa mesa tomando cerveja. Ficam lá, se embebedando e tentando seduzir as tietes. E isso eles fazem com facilidade, porque, é incrível como as garotas ficam impressionadas e se sentem atraídas por gente que sobe em palcos.(Mais especificamente,por garotos que sobem em palcos para tocar, porque nunca vi elas rasgarem calcinhas por causa do rapaz que monta o som,ou por causa do menino que varre a sujeira que nós deixamos lá em cima)).Eu vou-me embora para Parságada, porque tenho faculdade todas as manhãs, sempre no horário absurdo dos padres, como na época do colegial. Saio sem me despedir, como sempre.
Adeus, por hoje, mundo de plástico.
Caminho rumo á estação de metrô. Na Rua da Casa Noturna tem uma boate gay. Sempre que passo por ali, voltando do trabalho, vejo muito movimento, a música é envolvente, e muitas vezes, tive vontade de entrar. Mas não sei o que eu faria sozinha num lugar assim, então nunca entrei.
Hoje vi uma cena diferente, que me chamou a atenção: duas garotas discutiam. Uma delas tinha o cabelo raspado, e tatuagens por todo o corpo. Usava uma camiseta preta e tinha espetos metálicos na língua, nas orelhas e no nariz. Muitos espetos metálicos. Parecia muito brava e insensível, enquanto a outra, que tinha belos cabelos ondulados e longos, e uma pele maravilhosamente morena, chorava.
Fiquei o resto do caminho pensando no motivo daquela cena. Por que estariam assim, tão transtornadas? Fiquei com vontade de estar no lugar da moça careca. Eu não estaria tão brava, e em vez de ficar com a cara amarrada, teria abraçado a bela garota que chorava.
O metrô veio vazio, como em todas as noites. Fiquei olhando a paisagem noturna. O vento estava frio. Junho se aproximava.
Cheguei em casa mais deprimida do que sempre. Abri um pacote de biscoitos e me sentei na frente da TV desligada. Hamlet me olhava com os olhos tristes e doentes dos cães que sabem que vão morrer. Senti uma coisa estranha. Uma tristeza tão funda e cortante! Senti-me infeliz, e pressenti as saudades que eu teria do meu cachorro, assim que ele morresse, e senti também, meio que inconscientemente, que ele era uma espécie de elo que me unia a outra época da minha vida, época que insistia em ficar apodrecendo em mim, como um enorme e feio cemitério abandonado.
Sussurrei delicadamente seu nome, venerado desde minha primeira leitura de Shakespeare, e ele se levantou, todo murcho, com as orelhas caídas, com os olhos tão pesados de morte, literalmente com o rabo entre as pernas, e magro como judeu em Auschwitz, e se entregou dócil às minhas tristes carícias. Os meus olhos e os dele estavam úmidos. E pensei: “estou acariciando a morte”. “Isso é morte, esses olhos tristes de cão doente.”
Em seguida, depois de minutos intermináveis chorando antecipadamente a morte de Hamlet, caminhei pesadamente para o quarto. Dormi sem escovar os dentes, e sonhei que eu era uma arqueóloga, que abria sarcófagos, onde se encontravam os lascivos poemas de Safo. Em um dos sarcófagos estava escrito “Átis”. Me  lembro de , no sonho, ter ficado excitada com o ideia de conhecer a tão famosa amada de Safo, mesmo que decomposta.Quando abri a tampa do antigo esquife,lá estava Claudia, com uma plaquinha que dizia “ me mate em seu coração”.
Acordei sobressaltada.

O monstro do armário V


Me lembro  perfeitamente daquele orgasmo confuso, melancólico e desesperado, naquela tarde chuvosa, ao som de lamentáveis violinos paternos e ruídos de unhas caninas na porta do quarto. E me lembro que a fome, que havia desaparecido, me atacou violenta, depois que gozei, mas não tive coragem ir a até a cozinha pegar o resto do meu almoço, porque eu teria de encarar Hamlet e, talvez, meu pai, e eu estava com vergonha. Vergonha de ter sentido tanto prazer pensando numa menina, e era como se meu pai fosse capaz de descobrir o que eu passei a considerar, a partir de então, meu terrível segredo. Então chorei muito, e dormi faminta.

Não sei por que, mas a lembrança dela, mesmo tendo passado tanto tempo, ainda me enche de febres. Adoeço. Quantas outras vezes, depois que ela voltou para o México, ainda não morri de amores solitária, em meus lençóis amarrotados e impregnados de lembranças doces e quentes?

E já fazia tempo que eu não pensava nisso. E, de repente, uma ferida aberta, numa manhã desbotada, me engravida de nostalgias...

Mas, tudo bem. Vamos colocar um curativo com mertiolate também em meu coração. Talvez funcione.
Finalmente cheguei em casa, e vou ter de passar a tarde toda sozinha. Ou melhor, com Hamlet. Mas ele anda meio triste, talvez esteja doente. Nem pula mais em mim quando chego. Meu pobre cão está envelhecendo...

Acho que vou almoçar e dormir.

Na cozinha, um universo de copos sujos, pratos com sobras de comida, e uma barata atordoada, desmaia perto da lixeira. Deve ter cheirado muita naftalina, coitada. Dou-lhe um golpe mortal com o solado do meu all star. Golpe de misericórdia.
Maravilha, não tem comida. Quando meu pai viaja, é sempre assim, tenho que me virar e como não sei nem fritar ovo, tenho que passar o dia à base de miojo. Então coloco água pra ferver, coloco o macarrão na panela, e o telefone toca.
Era meu pai. Me pergunta se está tudo bem, eu digo que sim, reclamo mais uma vez de sua repentina viagem, ele diz que é assim mesmo, que tenho que me acostumar, me pede pra comer direitinho, diz que está com saudades e desliga.
Colocar o telefone no gancho me deixou com um buraco no peito. Estou toda sensível hoje, e não gosto de ficar assim. Geralmente solidão não me incomoda, mas hoje é como se eu tivesse sido abandonada pelo mundo. Me sinto como se ninguém me amasse.
Almoço, me deito e fico pensando na noite que virá. Mais tarde irei à Casa Noturna tocar sax. Eu e minha banda de gente sem graça. Não sei por que continuo tocando com aquelas pessoas. No fundo, no fundo, toco sozinha, porque acho que eles são todos muito chatos. Pessoas individualistas e mesquinhas. E falsas. Pessoas de plástico. Odeio plástico.

domingo, setembro 18, 2011

Contos de vacas I

Era uma vez um lobo que queria ser mau. No fundo ele era até bonzinho, no entanto seu pai havia sido mau, seu avô também e seu tataravô já tinha até devorado uma velhinha inteira, sem mastigar!
Então o lobo queria ser mau, mais por obrigação do que por maldade inerente.

Mas o lobo não conseguia ser mau, porque ele era um lobo torto.
Tinha as orelhas tortas.
Tinha os olhos tortos.
Tinha o nariz torto.
Tinha a boca torta, os dentes tortos,o pescoço e as pernas.Tudo torto.
Todo mundo ria do lobo torto.

Um dia ele decidiu atravessar a floresta em busca da casa de uma velhinha que gostava de doces e tinha uma netinha que só usava roupas vermelhas. Ele pensou:

"Nem poderei assustar a menininha dizendo que minhas orellhas tortas servem para ouvi-la melhor; e que meus olhos tortos servem para vê-la melhor e que meu nariz torto serve para cheirá-la melhor e que meus dentes tortos servem para comê-la melhor. Meus ancestrais sempre se orgulharam tanto desse discurso! Mas ai de mim! Sou todo torto! Mas quem sabe eu não mate a menina de tanto  rir, assim, poderei devorá-la."
E povoado por pensamentos melancólicos, o lobo torto seguiu seu caminho.

Finalmente chegou à casa da vovó.
Ao olhar pela janela, viu que a velhinha e a menina vermelha tomavam chá e conversavam descontraidamente. Bateu na porta:

__ Quem é? __ Disse a menina.
__ O lobo mau! Aquele que pega as criancinhas pra fazer mingau!__Ele respondeu, tentando engrossar a voz.
__ Vovó! Acho que tem outro idiota lá fora tentanto passar trote! Que saco!__ Dizendo isso, abriu a porta.


Ao se deparar com aquele bichão todo disforme a menina não riu.Ficou tão comovida que começou a chorar.
O lobo, envergonhado, abaixou a cabeça, e chorou também.

Então, o tempo parou um pouquinho.Depois, o pouquinho virou eterno, com  direito a ter um fim, caso o tédio de deus fosse maior que sua vontade de descansar.

Uma fada, meio desorientada,passou por ali  e, sem querer, encostou a varinha de condão nos grossos pêlos do lobo torto.

Algumas eternidades depois, alguém descongelou o tempo.

As lágrimas do lobo, que tinham ficado brilhando na ponta do nariz, despencaram e penetraram a umidade da terra.
O lobo torto foi encolhendo, encolhendo, encolhendo, até se transformar num adorável cachorrinho de estimação.

segunda-feira, setembro 05, 2011

O monstro do armário IV


Marina e Cláudia estavam paradas diante da porta vermelho-sangue da sala que procuravam. Olhavam para o número 15 pintado com tinta preta, que já começava a desbotar.
 __ É aqui__ Disse Marina. O corredor estaria deserto se as duas não estivessem ali.
__ Este lugar é meio assustador. Melhor a gente ir andando... __ Disse Claudia, fingindo estar com medo.
__ Então, o que estamos esperando? __ Disse Marina, já fazendo o caminho inverso que tinham percorrido até chegar à sala quinze. Claudia fez o mesmo.
__ É impressão minha, ou você tem um leve sotaque? Tão leve que não consigo identificar de onde... __ Perguntou Marina.
Claudia respondeu sorrindo:
___ Sim, tenho um leve, muito leve sotaque. Eu morava do México, desde os primeiros meses de vida.
Marina estava admirada:
__Puxa, mas seu Português é perfeito!
Marina se explicou:
___Ah, sim... Isso porque minha mãe é daqui.  Em casa só falávamos Português. Ela sempre teve medo de esquecer a língua de seu país. Meu avô, pai dela é que é mexicano. Ele e minha avó viveram aqui durante muitos anos e aqui criaram minha mãe. Depois voltaram para o México. Minha mãe  ficou, e depois que engravidou de mim, resolveu ir para lá também.
Marina ouvia tudo atenta.
___ E seu pai? __ Arriscou perguntar, sem saber se deveria.
___ Meu pai sempre morou aqui. Estou na casa dele agora. Minha mãe estava muito chata, pegando demais no meu pé, então eu disse que queria vir pra cá. Ela não gostou da idéia, mas eu fiz muitas chantagens, tipo ficar sem comer, e comecei a me recusar a ir à escola também. No fim das contas, acho que ela concluiu que me mandar pra cá seria um alívio. E aqui estou.
Marina prestava atenção em cada palavra dita por Claudia. Enquanto isso olhava para seu rosto, comovida. Ela era sem dúvida, a garota mais bonita que já vira em toda a sua vida.
___ Você se jogaria de um penhasco por causa de um homem? __ A pergunta de Claudia atingiu Marina, que estava desprevenida, em cheio, como se um tijolo misterioso houvesse se esfarelado sobre sua cabeça, numa rua sem construções em andamento.  Ficou tonta novamente, e sua pele branca, quase transparente, ficou da cor da porta da sala 15. Respondeu gaguejando, diante do olhar fixo de Claudia:

__ Não! Quer dizer... Não sei, ou melhor... Acho que eu não me jogaria de um penhasco por ninguém. Você pularia?
__ Não, não... Detesto drama. Mas eu acho que pular por causa de um homem é burrice demais. Só isso.
Marina não teve coragem de perguntar qual era o problema que Claudia tinha com os homens. Chegou até a pensar que talvez ela fosse como sua falecida mãe: uma ativista feminista, que um dia usaria um homem só para engravidar, e depois o jogaria no lixo, como se ele fosse uma máquina de lavar estragada.
Elas já se encontravam próximas às grades dos portões eletrificados da escola secundária. Marina só percebeu que o tempo havia passado mais rápido do que sempre porque seu estômago roncou.

__ Bom, preciso ir. Tô morta de fome. __ Disse Marina. __ É bem provável que a gente se encontre amanhã, afinal, sua sala é do lado da minha.
As duas se abraçaram e se beijaram fraternalmente.
Claudia disse:
__ É, vai ser foda estar aqui às sete da manhã... No México a vida só começa depois da nove. Se não fosse o chato do meu pai eu não teria vindo hoje. Esse horário absurdo só pode ser coisa de padre. Não é possível!__ Disse sorrindo o sorriso mais lindo do mundo.
Marina ouviu aquele comentário com prazer.
Claudia já se afastava, olhando ainda para Marina, que permanecia de pé, encostada no portão da escola.
__ O que está desenhado?__ Marina perguntou com voz forte, para se fazer ouvir, já que a amiga já estava um pouco distante.
__ Desenhado onde? Claudia respondeu.
__ A tatuagem nas suas costas...
__Ah, ta. É uma loba.
__ Nossa, que agressivo! Marina sorria irônica.
__Nada... Ela é mansinha. Em vez de sangue, gosta de mel.

Ao dizer isso, acenou mais uma vez para Marina e parou de andar de costas, como vinha fazendo desde que havia sido questionada sobre a tatuagem.

Marina a viu desaparecer na esquina nublada. Ficou se lamentando por não ter tido a oportunidade de ver sua tatuagem e ficou imaginando como seria o desenho de uma loba viciada em mel. No dia seguinte pediria para ver. Sem querer, acabou se lembrando do garoto comedor de meleca que vira pela manhã desenhando pintos sob medida, para todos os gostos.
 Uma gota grossa de chuva caiu sobre seu nariz. As outras vieram juntas e fortes acompanhadas de um vento nervoso.
Marina correu sob a tempestade.

Ao chegar a casa foi saudada pelos latidinhos frenéticos e felizes de Hamlet. Como manifestação de carinho recebeu também um par de patas de cachorro, desenhadas com lama em seu uniforme encharcado.
Uma canção triste de violino ecoava. Por um momento, houve pausa na música, seguida do som da voz paterna:
__ Marina, você demorou hoje.
__Estive conversando com uma nova amiga__. Ela se explicou.
__ Seu almoço está na geladeira__ele disse, sem sair do quarto, e continuou sua canção.

Depois de tomar um banho bem quente, colocar roupas confortáveis e secas, Marina tentou almoçar, mas só então percebeu que havia perdido a fome. Comeu pouco e seguiu para seu quarto.
Ficou irritada com a presença de Hamlet que estava lá, deixando poças de lama por onde passava. Expulsou o cachorro do quarto a chineladas e palavrões. Deitou-se. Estava péssima. Sentia-se sozinha, seu cachorro havia emporcalhado tudo, estava com sono, não parava de pensar em Claudia. Vontade imensa de chorar. Ouviu ruídos estranhos vindos do armário. Detestava abrir aquela porta, porque tinha medo de encontrar lá o monstro das lendas infantis. Sabia que era bobagem, mas tinha medo. E medo é medo. Caminhou até o armário que ás vezes parecia um sarcófago. Abriu uma de suas portas. Duas baratas escandalosas copulavam no escuro. Ao serem surpreendidas, ficaram olhando para Marina por instantes, com cara de quem é pego no flagra fazendo coisa errada. Mas antes que Marina tivesse qualquer tipo de reação, as baratas abriram suas asas de seda cor de ferrugem e voaram pela janela. Marina correu para a cama, se masturbou pensando em Claudia, chorou e dormiu como uma pedra triste. A porta do armário estava aberta.