terça-feira, outubro 18, 2011

O monstro do armário IX

Que porra de sonho esquisito foi aquele? Puta- que-o pariu. Imagina, eu, excitada, abrindo um caixão matusalém, procurando uma sacana que maltratou o coração de uma poeta! E quem encontro? Outra sacana. Não sei quem foi mais filha da puta, Átis ou Cláudia. Posso fazer um julgamento assumidamente pessoal e passional, à la Dom Casmurro? Pois então lá vai: a mulher mais vagabunda do mundo é Claúdia! Eu a odeio! Átis? Pobre coitada, deve ter sido seduzida pela safada da Safo, caiu de amores, envenenada por aquela poesia mulherificada.Safo pode ter até sofrido mas,na minha opinião, ela sabia que sofreria. Se arriscou. Foi ela quem atacou. E, para mim, a culpa é de quem seduz, de quem conquista. Principalmente se a sujeita vai embora depois, dizendo: "Ow, foi legal ter te conhecido".
Acho que preciso de um banho para espantar esses exus. Hoje é sexta feira 13. Puta que na merda. Vou tomar banho, vou para a faculdade, faço prova, volto e hiberno por uns 15 anos, até meus hormônios estarem mais calmos. Até chegar o momento em que será possível respirar.

Que tanto de panela suja, Jesus de Deus! Às vezes penso que em alguma fenda invisível de alguma dessas paredes existe um monstro muito do mal, especialista em fazer proliferar a sujeira da cozinha.
Tento garimpar pelo menos um copo que seja, no meio desse melecão todo. Nada. Xingo o monstro nomeando-o com os mais deploráveis palavrões.O infeliz nem se dá ao trabalho de me responder e fico pensando que ele está rindo de mim, porque acordei de mau humor e me ver assim o diverte. Ele, este habitante dos micro-túneis sombrios dos tijolos é, sem dúvida,parente daquele outro, que mora no armário do quarto há eras geológicas. São primos. Ou serão gêmeos siameses?Não sei. Só sei que eles são os responsáveis pela existência de todas as baratas.
Pensar em baratas me fez desitir do café da manhã. Espalho Baygon pela cozinha inteira, com a esperança de que o monstro morra e saio correndo para o banheiro.

É sempre assim : toda vez que fico pelada penso em sacanagem. E embora eu tenha acordado hoje amaldiçoando minha namoradinha da adolescência, é nela que penso agora.

Meus pensamentos lascivos começam meio penumbráticos, tipo, um barulho de interfone, era de tarde, eu a esperava, meu coração trepidava como um operador de furadeira, eu suava, eu morria de febre.. No meu entre-pernas coisas estranhas aconteciam também. Eu estava derretendo? Uma doçura incrível circulava por meus peitos e fazia um tour, descendo até meu útero e ficava assim, irrigando meu corpo todo de desejo.
Eu abrindo a porta.. Ela entrando... estava linda. Putz, isso é redundância. Nós duas indo direto para o quarto...

Nosso diálogo:
Eu: Desculpa, Cláudia, pela merda que falei.
Ela: Nossa, quantos livros!
Eu: Cláudia, não sou preconceituosa. É que fiquei muito assustada com essas coisas desconhecidas todas desestabilizando meu corpo e...

Ela: Caralho, quantos discos!


( acho que essa foi a hora exata em que me apaixonei mesmo por ela, quando ela chamou meus CDs de discos)

Ela estava fascinada, olhando para minha estante. Eu estava fascinada olhando para as costas dela. Eu me aproximei. Olhei para a loba e fiquei meio hipnotizada, acariciando-a com as pontas dos meus dedos. Houve um silêncio pré-histórico( aquele de antes do macaco, quando tudo era feito de caos e sem ruido algum). A seiva mágica que circulava no meu sangue se agitou ainda mais. Então Cláudia se virou para mim, cheirou meus cabelos como se eles fossem lírios e me beijou.

Foi estranho e bonito.

Ficamos na sacanagem a tarde toda, misturando corpos e líquidos e toda nossa furiosa ternura juvenil.
Hamlet, coitado, infeliz e sozinho, chorava do lado de fora.

















O monstro do armário VIII


__ Cadê a tatuagem?__ Marina perguntou, à queima roupa.__ Ontem fiquei doida pra ver.
__ Ah... A minha lobinha...__ Disse Cláudia, abrindo um esplendoroso sorriso sacana no entre- parênteses da face morena.
Afastou os cabelos das costas e se virou, de modo que Marina pudesse ver o desenho colorido.
Marina estremeceu. Chegou muito perto de Cláudia. A amiga tinha uma nuca linda e o cheiro que vinha de lá a adoeceu. E a loba era o máximo. Dava vontade de sentir com os dedos. Dava vontade de sentir com os lábios. Marina tocou o trecho tatuado e, num impulso inconsciente aproximou a boca das costas de Cláudia, mas antes de beijá-la, foi interrompida por um grupo histérico de alunas do segundo ano que entrava eufórico no banheiro, quebrando o encanto daquele momento de encontro.
As duas ficaram um pouco constrangidas, mas fingiram que uma estava abotoando o sutiã da outra. Lá fora continuaram a conversa:

__ Cláudia, to tão feliz por ter te conhecido! É uma felicidade estranha. Parece que to em estado de graça.
As duas trocaram olhares comovidos e se abraçaram. Marina pensou que fosse explodir, mas era alarme falso.
__ Você tem muitos amigos? Perguntou Marina.
Cláudia respondeu:
__ No México eu tinha. Minha mãe não gostava muito deles. Por isso me mandou pra cá. Dizia que as amizades negativas não estavam me fazendo bem. Muito tradicional, ela.
__Mas por que ela não gostava dos seus amigos? Aposto que eram maconheiros. Que careta ela... Que pessoa da nossa idade nunca fumou um?
__ Eles eram todos gays. Homens gays, mulheres gays. Foi por isso. E ninguém gostava de maconha.__ Disse Cláudia, sorrindo.
__ Como assim?
__ Todo mundo era bicha e sapatão. Fui clara?
__ Eu entendi. Mas por que você andava com gente desse tipo? Se eu fosse sua mãe também ficaria brava.

Cláudia se enfureceu:
__ Não acredito que to ouvindo isso de você!

Marina se assustou e disse:
__ Calma, Claudia, você está gritando! Por que ficou assim tão nervosa de repente? O que eu fiz?
Cláudia a interrompeu, mais transtornada ainda:

__ Preste atenção, pirralha: como você queria que eu me sentisse? Primeiro você fica morrendo de vontade de ver minha tatuagem. Depois, me dá uma alisada daquela lá dentro do banheiro, e, por pouco, não me dá uma lambida também! Depois diz que está em estado de graça por ter me conhecido... E olha que a gente se conheceu ontem! E eu aqui, sentindo as mesmas coisas e acreditando que estivesse acontecendo algo entre a gente. Então você me dá um banho de água fria com esse papo preconceituoso... Que decepção.

__ Claudia, eu quero uma amiga. Pensei que...
__ Amigas não ficam se desejando, Marina.
Ao dizer isso, se afastou magoada, sem se despedir.

Marina era uma efígie muda no coração do I.E.

As últimas aulas foram um suplício. Marina estava confusa. Não queria ser mal- interpretada, estava também assustada com aquela felicidade mágica e estranha que sentia e o com o transe que quase a levou a beijar as costas da amiga. O que estaria acontecendo?Seu coração estava atormentado.
Quando a aula terminou, Marina foi até o armário de Cláudia e deixou um bilhete que dizia o seguinte:

Claúdia,
Desculpa!
Tô confusa...
Se ainda quiser conversar comigo, vai lá em casa: A gente toma uns vinhos e eu te mostro uns discos.
Um beijo, na loba.

segunda-feira, outubro 17, 2011

O monstro armário VII


A noite de sono de Marina não tinha sido nada tranquila: como havia dormido a tarde inteira  depois de ter chegado da escola, teve muita dificuldade para dormir a noite. Quando conseguiu, sonhos eróticos se misturaram a exóticas cenas de canibalismo e de rituais sagrados desconhecidos.
Ela acordou antes do horário programado no despertador. Ainda não havia amanhecido.
Para Marina, acordar era uma coisa muito difícil. A coisa mais difícil do dia, por mais que este tivesse complicações que se parecessem, muitas vezes, com monstros apocalípticos cabeludos.
Um dos motivos que a deixava tão deprimida ao amanhecer era o fato de que sempre dormia muito tarde. Quando acordava tinha a sensação de que havia apenas cochilado e, junto com essa sensação, vinha uma preguiça profunda da vida, das pessoas, do sistema, da rotina, etc. e tudo o que ela mais queria era dormir para sempre. Mas não era a morte que desejava. Queria dormir para sempre estando viva, para ter consciência de que estava dormindo e do quanto dormir é bom. A preguiça profunda acompanhada de lancinante tristeza aparecia num momento específico: quando começava o barulho do tráfego. Antes, às 5h da manhã, era o silêncio absoluto na ainda escuridão do quarto; depois, à medida que os móveis iam tomando forma, graças à luz que timidamente penetrava as persianas, começavam os roncos dos motores de veículos diversos e isso deprimia fortemente nossa protagonista.
O motivo nos escapa e cremos que a ela também. Coisas de espíritos inquietos e melancólicos.
Ela acordou ainda com o gosto da carne de uma mulher, a qual devorava em sonhos, em meio à fogueiras ancestrais. Sentiu o silêncio, ouviu a escuridão, foi tomada pelas dores provocadas pelo barulho da vida germinando das ruas que já haviam despertado. Deu um pulo da cama quente, banhou-se, fez o desjejum. Tomou coragem e partiu para o I.E.
Precisava ver Cláudia.
Na escola, o mesmo movimento de sempre, as mesmas cores de sempre, o mesmo relógio acusador de sempre. Mas havia algo que tornava, naquela manha, a atmosfera daquele lugar diferente: esse algo tinha uma tatuagem de loba nas costas. Marina não compreendia bem esse desejo aflito de ver a nova amiga, mas preferiu não pensar muito sobre o assunto. Desejava ver Cláudia e era isso que importava.
Sua vida, até então, tinha sido solitária. Nunca tivera amigos íntimos, nem tinha um namorado. Tinha um cão, que se chamava Hamlet, que já contava cinco anos. Passava suas tardes devorando histórias de ficção, passeando pelas vidas de suas personagens, fazendo reflexões sobre essas vidas de papel e sobre sua própria existência. Lia e relia poemas, sorvia cada palavra, como se fosse doce de leite na época da menstruação. Seu universo lírico era repleto de poesia, de cenas de filmes, as quais via infinitamente, de belas canções que provocavam nela o sonho e o desejo de sonhar cada vez mais.
Se considerava uma garota feliz, no entanto sentia que faltava algo: alguém com quem pudesse compartilhar de seu universo. E esse alguém_ ela sentia_ era Claudia. Sua futura melhor amiga.
Na sala 14, a aula estava entediante. Os pensamentos de Marina se perdiam no dia anterior, quando, durante a palestra de Virgínia. L ela havia conhecido Cláudia. Ela estava tão perto! Apenas uma parede as separava.
O garoto gordo, das bolinhas de meleca, estava inerte: não desenhava pintos e nem enfiava o dedo no nariz. As formigas, quando se aproximavam dele, faziam uma cara assustada e davam meia volta. A garota loira, por sua vez, não largava o espelho, para o qual olhava obsessivamente.
O sinal soou estridente por todos os corredores de portas vermelhas, anunciando a hora do intervalo.
Claudia, com cara de sono, estava prestes a sair do banheiro, quando deu de cara com Marina, que sorriu um voluptuoso sorriso solar.

quarta-feira, outubro 05, 2011

O duplo do voo

I
Bandeira triste

O aeroporto em frente,
lições de partir.

II
Garimpar a beleza da partida

Urubu é bicho forte
é  voo
obscuro
que se nutre
de morte.