I
Ela me
telefonou e disse: “Querida, vamos à Paris em abril”. Hesitei: não tinha
dinheiro, nunca tive. Sabe-se lá se algum dia terei.
A vida é curta
e o mundo é vasto, eu sei. Viajar é preciso. Mas há as despesas domésticas,
vastas como o mundo, e um salário ainda mais curto que a vida. Além disso,
sempre houve as narrativas maternas que, durante muito tempo, castraram meus
desejos cosmopolitas: acidentes nas estradas, pessoas perdidas, que nunca mais
voltaram para casa, a preocupação excessiva com meu delicado estômago, quando
sujeito ao movimento curvilíneo dos veículos.
Nem às
excursões da escola eu ia. Sempre ouvia a mãe dizer: “Soube de um caso, certa
vez, de um grupo de mocinhas que foi fazer uma viagem para uma gruta, o ônibus
caiu numa ribanceira e não sobrou ninguém”. Às vezes a história sofria algumas
corruptelas: “Soube de um caso, certa vez, de umas mocinhas que foram viajar, o
ônibus estragou no meio da estrada, de madrugada, perto de um matagal, o povo
teve de dormir ali mesmo, enquanto esperava o socorro mecânico; e as mocinhas
foram todas estupradas e mortas”...
“Ih, mãe,
para!” Eu respondia já desanimada. Ela prosseguia: “Você enjoa, minha filha.
Vai ficar passando mal fora de casa. Isso é muito ruim. Passar mal e não poder
voltar pra casa quando a gente quer é uma tristeza”.
Depois de me
libertar da tutela da minha querida velhinha, com a chegada da idade adulta,
viajei um pouco. E fui, paulatinamente, perdendo o medo incutido na infância.
Não por completo, é claro. Porque as histórias de mãe grudam na pele, como
cheiro de cebola. Para o bem, ou para o mal.
Mas minha
namorada, certa noite, me ligou e disse: “Vamos, querida, à Paris em abril”. E
eu tive que concordar, equilibrando-me entre a estranheza, a euforia e o medo
de não conseguir pagar as contas no final do mês.
Era hora então
de fazer os preparativos para a viagem. E, entre eles, é claro, havia a
necessidade de selecionar algumas imagens, as imagens certas do que eu queria
ver, para evitar possíveis decepções. Na época eu estava lendo Proust,
justamente aquele episódio de Em Busca do
tempo perdido em que o protagonista chega ao balneário de Balbec, e sofre
uma das grandes decepções de sua vida. O fato é que Marcel tinha passado bons
momentos de sua infância lendo livros sobre a Normandia medieval e pensou que
ao chegar a Balbec encontraria as imagens adoradas vistas nos livros. Rochedos.
Pássaros estranhos e escuros sobrevoando o mar gélido. O canto melancólico
dessas aves. Mas não. Seu sonho havia
perdido o trem da modernidade. Balbec, a da vida real, tinha um hotel à beira
mar, repleto de turistas em férias. Sim, Alain de Botton estava certo ao dizer
que quando o adolescente Marcel foi a Balbec pela primeira vez, saiu de casa
com as imagens erradas na cabeça.
O que eu
queria ver? Torre? Não. Até queria ver
sim, mas não apaixonadamente. Arco? Também não tinha nada a ver com meus
afetos. Trocadéro? Ah, eu nem sabia o que era isso. Notre Dame? Talvez.
Combinava mais com um certo misticismo que desconfio existir em mim.
Depois de
muito ruminar cheguei a algumas conclusões. Quando Raquel me perguntou a
respeito do que eu queria ver em Paris, eu disse: “Quero ir ao Pèrre Lachaise,
ver o túmulo do Proust; quero encontrar os livros de Anne- Marie de Backer e, se
possível, quero entrar na Saint- Chapelle.”.
É claro que a
ordem aqui não importava: uma vez que eu faria tal viagem, ver o túmulo de
Proust ou encontrar a poesia de Anne-Marie de Backer tinha a mesma urgência
para mim. Nossa viagem se estenderia também à Londres , e meu único desejo ali,
era conhecer a Galeria dos sussurros, que fica na Igreja de Saint Paul e é
famosa por sua acústica “impressionante”.
II
Anne- Marie de Backer.
Conheci Anne
Marie de Backer um ano antes da viagem, lendo um livro do Bachelard, chamado A Poética do devaneio. Lindo, lindo
livro. Num capítulo intitulado “O cogito do sonhador”, fui ferida de morte por
esses versos dela:
Deixou-me tudo o que preciso para viver:
Seus cravos negros e o seu mel no meu sangue
E ainda:
A begônia de prata se desfolha no fundo das fábulas
Desfaleci. E é claro que saí a procura de poemas inteiros
dela, pelas tão bem sinalizadas avenidas da internet.
Nada. Apenas
algumas informações biográficas, entre as quais estavam incluídos os nomes de
suas obras de poesia. Nomes que me deixaram ainda mais inquieta, imersa em uma
espécie de angústia que a gente só tem quando há a promessa de uma beleza
desconhecida, e o desejo que tal beleza venha conversar com nossas feridas, com nossa
orfandade, com nossa incurável solidão. A
dança do cisne negro; As estrelas de novembro; O vento das ruas; A erva e o fogo; A dama de Elche; Estrela
Lúcifer; Urtigas com chamas azuis; O Sol da ventania...
Sonhei, sonhei
muito com esses títulos, publicados entre os anos de 1952 e 1975.
Depois da
decepção com o Google (o oráculo de Delfos da pós-modernidade) por causa de seu
quase silêncio diante do desespero de minha busca, decidi procurar as obras
para compra on-line. Visitei sites de
livrarias francesas, visitei o site da editora que publicou os livros de
Backer, tentei a loja virtual da FNAC francesa e até apelei para a Amazon.
Nada. Ou melhor, pouco, muito pouco: apenas um livro de crítica sobre sua
poesia, o qual não me interessava.
Esqueci por um
tempo Anne- Marie de Backer, como se esquece do olhar de alguém que desceu do
metrô numa estação antes da gente, fazendo a gente pensar seriamente sobre
universos paralelos, enquanto uma chuva fina cai sobre os trilhos, e faz doer
com mais força em algum lugar, dentro, a saudade do que nunca existiu.
Quando a
possibilidade da viagem surgiu, o desejo retornou impaciente. Eu sabia que o
túmulo do Proust estaria lá onde havia sido colocado; sabia que a
Saint-Chapelle não tinha migrado para a Ucrânia e sabia que em Londres, a
cúpula da Saint Paul estaria a minha disposição, desde que eu estivesse disposta
a pagar 6 libras por um ingresso. Mas, e minha poeta? Eu a encontraria?
Em Paris os
dias não foram os mais felizes da minha vida. Fui acompanhada, durante todo o
período de estada na cidade, por uma
velha dor de coluna, que não me importunava já há algum tempo. Minhas
caminhadas eram sofridas, caminhadas de dia inteiro, uma via- sacra de museus e
monumentos, sentindo algo deslocar-se na região dos meus quadris.
Foi bonito ver
o túmulo do Proust; fiquei em silêncio, emocionada. Quase desmaiei na Saint
Chapelle quando entrei na nave, cujas paredes são constituídas somente por
belíssimos vitrais, por onde a luz passa, virando puro sonho, lá dentro. E
quando fui à Londres, me decepcionei muito com a galeria de acústica “incrível”.
Mas isso é outra história.
O fato é que,
em Paris, outra dor veio andar de mãos dadas com os lastimáveis sofrimentos de
meu corpo: não encontrei os livros de poesia de Anne-Marie de Backer.
Era dramática
a forma como eu percorria a Rive Gauche, passando por cada barraca verde, onde
livros carcomidos estavam expostos. “ Bon
jour! Je cherche des livres de Anne-Marie de Backer”; “ Vous avez des livres de
Anne-Marie de Backer?”,perguntei, ínumeras vezes, num tímido, mas bem pronunciado
francês. As respostas negativas pareciam fazer minha dor lombar ficar mais forte.
Um dos vendedores, simpático senhor de boina e colete, me disse que era difícil
mesmo, encontrá-la. “Talvez no Quartier Latin”, ele disse.
No dia seguinte fomos ao lugar
indicado . Eu e Raquel entramos em grandes e pequenas livrarias.
E o mais incrível é que os vendedores nem sabiam quem era a poeta. Uma moça até
me perguntou: “Cette poétesse que vous recherche... Elle est française?”. “Oui,
oui”. Eu respondia, com o coração cada vez mais vazio.
Enfim,
voltamos para casa, com a mala cheia de discos, de livros de arte, de perfumes
e de lembrancinhas para os queridos. Anne- Marie de Backer deve ter ficado no
fundo de alguma caixa de livros amontoados, que eu não tive tempo de revirar...
No Brasil,
ainda procurei por ela. E encontrei. Num site de uma “agência- detetive”, cuja
missão é encontrar livros raros espalhados pelo mundo afora e vender para
desesperados, como eu, pelos olhos de nossas caras. O mais barato era a Dança do Cisne negro, numa publicação em
formato de periódico, com míseras 28 páginas. Preço: 200 reais.
Confesso quase
ter caído em tentação. No entanto, a experiência de algumas pequenas tragédias
afetivas foi o suficiente para que, após longos processos de cicatrização, eu
começasse a olhar com mais desconfiança para os excessos do amor.
Hoje,
Anne-Marie de Backer é, para mim, apenas mais um vitral estilhaçado na minha
catedral de saudades.