sexta-feira, dezembro 28, 2012

Nem tudo está perdido


Livro sobre Anne-Marie de Backer. Um dos poucos de crítica sobre sua poesia



Veio com autógrafo! Que alegria!




O rosto que eu queria conhecer...

Hoje tive um dia chato. Postei o seguinte desabafo no facebook:

"Coisa chata número um do dia: às 4 da manhã, o vizinho liga o rádio dele na Itatiaia. Me acorda, acorda Raquel. Fico puta porque quando acordo assim, fico com dificuldades pra dormir de novo e fico um molambo o dia todo. Fui lá na varanda, chamei o vizinho. Xinguei.

Coisa chata número dois do dia: voltando pra casa, na companhia de Cíntia Almeida, um ser musculosinho de ray ban na cara entrou repentinamente com sua motoca envenenada na frente do meu carro, o que me fez tomar um puta susto, embora estivesse muito atenta. Buzinei, para chamar a atenção e o menino ficou com raivinha e começou a morcegar na minha frente, empacando uma fila inteira de pessoas cansadas que queriam voltar pra casa antes do temporal. Quando deu eu ultrapassei e não resisti: chamei ele de folgado. O bebê chorão ficou ainda com mais raiva, e  deu  uma acelerada na titanzinha . Esse é certamente  o jeito que ele, animal,
sabe bufar. Veio em direção ao meu retrovisor esquerdo e eu preparei a minha mãozinha maquiavélica para puxar o tornozelo dele, caso ousasse chutar meu espelho. Não o fez, mas passou, olhando feio, tentando intimidar, relinchando sobre duas rodas.

Coisa chata número três do dia: cheguei a rua de casa debaixo do temporal. E pra variar, tava lá, na frente da garagem dessa pobre moça cagada de urubu, um carro estacionado. E a rua cheia de vagas. E o carro parado na porta da minha garagem. Esperei. O dono do bat-móvel era um senhor. Juro que pensei que fosse um menino, desses de 18, muitos dos quais ainda não têm responsabilidade alguma. Mas era um tio, de óculos e barba. E quando eu reclamei, dizendo que não se para em portas de garagem, ele me disse que tinha sido por apenas 2 minutos. E quando eu disse que não se para em portas de garagem em hipótese alguma porque é proíbido ,ele me chamou de alguma coisa feia que não ouvi direito, porque ele já estava dentro do carro. A essa altura, a chuva já estava bem mais forte, fato que fez com que eu tivesse muito mais trabalho pra abrir o portão e entrar, depois fechar o portão, sob um guarda-chuva que não segura tempestades.

Então: embora eu seja uma pessoa pacífica, cidadã e consciente dos males que a violência gera no mundo, eu juro que nesses momentos eu queria ter os músculos do meu irmão, William Mutante, pra afundar os osssos dos narizes de seres como esses dos quais falei acima"


Após mais de 60 cometários a respeito desse post, um dos meus vizinhos ( não era o do rádio da madrugada) me chamou para me entregar uma correspondência: era o livro sobre Anne-Marie de Backer que eu tinha importado da França. O livro veio autografado, como o "Oiseaux-Soleil", livro de poemas dela, que eu havia importado há alguns meses.. Pude conferir as letras e me certificar de que o autógrafo é dela mesma! de verdade! Além disso, pude ver, pela primeira vez, seu rosto, numa fotografia que faz parte do livro recém comprado. Acima estão as fotos :
1) da capa do livro
2) do autógrafo de Backer
3) a fotografia de seu rosto, que eu estava desejosa de conhecer, desde que o coração dela começou a conversar com o meu , quando  li, pela primeira vez,  dois versos seus num livro de Bachelard...

Nem tudo está perdido.

quinta-feira, dezembro 13, 2012

Outro da Backer

Tempestades 

Se você soubesse! Eu sofro e eu gostaria de sobreviver
à morte das palmas, ao fenecimento das espigas.
Parece-me que um dia maravilhoso irá me seguir
Após essas voragens que sopram incessantemente

O espectro de uma árvore se inclina sobre a sebe
O castelo assombrado movimenta-se embaixo de escuros pinheiros
todos os pecados mortais são opulentos e eu experimen
to
vender meu coração por um reflexo de esperança.

Os Espíritos da noite e do fogo me iludiram
mas o ar cintilante da chuva é semelhante ao cristal;
Tropeçarei ainda no ouro desta espada
quando eu tentar me esquecer dos jardins que acolheram meus primeiros gemidos?

Se você soubesse! O vento se atira pela minha janela
Folhagens sombrias, e eu não tenho sequer um ramo de oliveira em água benta embebido
Eu sei de cor o grito duro dos corvos que gira em minha cabeça
e faz vibrar até o infinito.

Quando a torre assombrada ampara as tempestades
eu permito que se queimem nas chamas do inferno aqueles que procuram seus corações
e rezo, desejando viver com a erva selvagem
até que venha a divina redenção da alegria.

Tradução: Simone Teodoro
IN: Le Vent des Rues
Edtions Pierre Seghers. Paris.

quarta-feira, dezembro 12, 2012

Mais um poema de Anne-Marie de Backer

Anjo 

Contra os roseirais reverdecidos
por tempestades exasperados,
meu Anjo da Guarda me abandonou
nos confins do Paraíso. 

Quando enfim eu chegaria
ao País dos corações sem problemas,
onde é possível esquecer de si mesmo
do amor e da fome.

Nos confins do Paraíso
meu Anjo da Guarda me deixou.
Sua cabeleira balançava
no vento gelado e resplandecente.

E suas asas de veludo azul
E suas vestes de neve adocicada.
Quem me hipnotizará sobre o musgo
ou cantará para que eu durma perto do fogo?

Esta capela de verdes vitrais
onde os Santos estão sempre tranquilos
Não há nada que possa me salvar ou me exilar
de um sonho pelo inferno avermelhado.

Da flor vermelha das papoulas
escondi conhecidas noites
Muitas coisas acontecem
para serem esquecidas sem nenhum gemido.

Meu anjo luminoso partiu
Através da maravilha do Reinos,
Eu acolherei todos os fantasmas;
para viver em paz, já menti tanto!

Sem as asas de veludo azul
E as vestes de neve adocicada.
Que o Demônio venha, se ele quiser...
Eis -me sozinha, à beira das chamas,
E nenhum astro me protege.







Tradução: Simone Teodoro
In: Le vent des rues. Editions Pierre Seghers. Paris.

sexta-feira, dezembro 07, 2012

Tulipas



Há uma parte de mim
onde a saudade é 
vermelha
cálida
gotejante.

E enquanto não vens
Estranhas tulipas explodem
na umidade insana
do desejo
que lentamente
me aniquila.

quinta-feira, dezembro 06, 2012

Azul-escuro

Extraordinária pétala
irrompendo em fúria
entre ramos sem cor.

Extraordinária lua,
interlúdio de luz
neste réquiem de sombras.

Mas o vento pronuncia
meu nome
E uma toalha manchada de vinho
espalha tristeza
sobre todas as coisas.

segunda-feira, dezembro 03, 2012

Valparaíso


1
Aquela casa era
um monumento às cores.
Feminina no nome
fora edificada no ápice
onde despertar
era um desenho distante do porto.

2
Horas mais tarde
você sorriria para mim
numa estação de buses
enquanto sorvia seu café expresso
tremendo de frio
sob o capuz vermelho do
suéter.

3
Em minha morada de cores
ecoa seu nome
E este sorriso
é mais que o mar
quando amanhece.

segunda-feira, novembro 05, 2012

Ana Cristina César Plath limpando a geladeira numa tarde de domingo

Resgatar
de dentro do freezer
o Polo Sul inteiro
( não me espantaria ter encontrado pinguins)

Icebergs na pia da cozinha!

E para evitar naufrágios
deliciar-me
ferindo  o gelo
com a fina lâmina
da água fria.

quarta-feira, setembro 26, 2012

Não era

Não era vento:
era ser forte
era ser fraco
e, às vezes, sem rumo.

Não era chama:
Era um gosto na língua
Era umidade entre as pernas
Era angústia de amar.

Não era outono:
era a superfície da pele
alcatifada por rugas.

Não era um trilho de trem
uma estação rodoviária
um aeroporto
nem mesmo o mar
com um barco distante:
era a vida que restava
acorrentada à ausência.

Não era chuva:
era tristeza pura.
E só.

segunda-feira, setembro 24, 2012

Profanação na teia

Tirar a roupa dela
enquanto vermelha lua
arde.

Romper cascas, desfiar casulos.

Contrair-me em
aracnídeo inseto.

Patas e pelos, perfurar
a pele profanada

E ela se contorce toda
Presa em minha teia:
Era pétala amputada
tornou-se flor inteira.

sábado, setembro 22, 2012

Pizarnik


Vou lendo a Alejandra aos pouquinhos e traduzindo, aos pouquinhos também. Em breve voltarei com a Backer. Já estou sentindo falta!


Nemo

Não está longe o dia de raro verdor
em que cantarei à lua odiada que dá luz à minha espessa cabeça cortada à navalha
que dá luz aos ventos brutais
às flores agudas que ardem nos dedos sob as benignas ataduras
à estrela que  se esconde quando é chamada
à chuva úmida girando em sua nudez repulsiva
ao sol amarelo que traspassa as peles marcando escuros traços
ao despertador, enviado do infernos interrompendo belos sonhos
aos mares gelados arrastando lixo ondas brilhos dourados ardores nos olhos.

                                                                          ( Alejandra Pizarnik in: Poesía Completa. Lumen: Barcelona, 2011)

Versão de Simone Teodoro

domingo, setembro 16, 2012

Gentileza, o caralho!

No prédio onde trabalho tem um caixa eletrônico disputadíssimo. A concorrência pela máquina aumenta, obviamente, nos dias posteriores ao do pagamento, o abençoado, sacrossanto e desejado quinto dia útil do mês.
Dia desses encontrei-o vazio. Nem acreditei. Eu tinha um envelope de faturas a pagar, algumas delas com vencimento para o dia seguinte, outras já estavam até atrasadas. Peguei meu pacotinho e caminhei rumo ao caixa. Tinha que ser coisa rápida, pois eu teria uma reunião em 15 minutos.
Então fui pagando, uma por uma, mantendo a calma até mesmo quando a máquina se recusava a ler alguns códigos de barra, ou a reconhecer meu cartão, acontecimentos que me obrigavam a repetir toda a operação.
Eu estava calma, coisa rara também, de uns anos pra cá.
Ouvi rumores de vozes. Eram três mulheres que formavam uma fila de espera para utilizar o terminal.
Elas falavam mal de mim! Falavam da demora, do tanto de coisa que eu pagava, que era um absurdo, um lugar com apenas um caixa eletrônico "permitir" que tantas operações fossem feitas por uma pessoas só.
Como elas ainda não tinham me dirigido a palavra, apenas continuei o que estava fazendo. Elas estavam como sorte, pois mesmo  com muitas faturas, costumo fazer tudo bem rapidinho,isto é, quando a máquina colabora.
Mas as donas continuaram lá com a conversa chata e deprimente típica dos que se sentem injustiçados. Então uma delas falou comigo.
-Moça!
-Oi?- Me virei para elas, agindo como se pela primeira vez na vida tivesse orelhas e ouvidos.
- Vai demorar?
-Vou. Olha o pacotão de coisas que tenho pra pagar.Se vocês estiverem com muita pressa não aconselho esperar.
- Mas eu preciso fazer um saque!- Ela protestou, como se eu fosse culpada pelo atraso que o fato de eu ter chegado primeiro ao caixa eletrônico ia provocar na  vida dela. Esse protesto era também uma forma de sugerir que eu a deixasse entrar na minha frente.
-E eu preciso pagar minhas contas!- Eu disse- Além disso, tenho que voltar ao trabalho. 
Então outra  mulher, provavelmente amiga da que falou comigo primeiro, levantou a voz em sua defesa:
- Mas ela tem que bater o ponto!
Minha calma foi pelos ares. Parei tudo, olhei para aquelas três caras de bosta e disse:
-Dona, eu não tenho nada a ver com isso!
E continuei fazendo a transfusão do meu suado dinheirinho para  contas bancárias alheias.




segunda-feira, setembro 10, 2012

Blue em rádio abandonado

Segunda-feira é dia de ir à casa da mãe para fragmentar um de seus comprimidos. Para isso, levo comigo uma pequena ferramenta de plástico, cuja lâmina interior faz o serviço da separação. E é estranho: toda vez que coloco o remédio lá dentro e pressiono a lâmina contra ele, tenho a sensação de estar partindo em dois também o meu coração. E quando saio da casa da mãe e a vejo , ao longe, me olhando 
pelo portão entreaberto, me perguntando com os olhos por que motivo estou indo embora tão cedo, é como se a metade do meu coração estivesse ficando lá, com ela.
Ao chegar em casa, fico me indagando se o blue melancólico que insiste em tocar na parte que veio comigo também está tocando lá, na parte que ficou, como num radinho abandonado.

quarta-feira, agosto 22, 2012

Funeral blue


Entrei com tanta pressa
na noite
demasiado fria
descendo escadas
rumo à garagem.

Havia alguma coisa perdida
no porta-luvas.

E agora estou triste
como quem acaba de voltar de um funeral.

Não sei por que
às vezes caio de tão alto
se já conheço a dor
que é ter ossos partidos

  A noite
( na qual entrei tão apressadamente)
 era vermelha
como se alguém houvesse esmagado morangos nas nuvens.

E eu estou triste
como quem acaba de voltar de um funeral

E depois de ter tentado trancar
a escuridão do lado de fora
e de nada ter encontrado no porta-luvas
um vento velho veio entrando
pelas fendas das janelas e fraturas
povoando toda a casa iluminada.

Chovia.

E eu estou triste
como quem acaba de voltar de um funeral.

Não sei por que
às vezes caio de tão alto,
eu que já conheço, tanto,
a dor de ter ossos partidos.

Ainda chove.
Mas eu estou triste
como quem acaba de voltar de um funeral.

Não sei por que.
Ossos partidos.
Às vezes caio.
Eu que já conheço tanto!
A dor.

terça-feira, julho 17, 2012

Mulheres em trânsito.



Fui a casa da mãe. O irmão me recebeu aos berros: 
- Sua magrela, seu carango não era preto?
Dizendo isso, avançou feliz, como uma criança de quem nunca roubaram o doce, para meu carro, que estava coberto de poeira branca.
- É tudo culpa do inverno- Me justifiquei. – Sereno a noite toda e essa secura durante o dia. A sujeira gruda mesmo.
Eu falava para as paredes, pois o irmão já estava desenhando nos vidros do automóvel. Além de pequenas figuras indecentes, escreveu em caixa alta uma frase obscena, dessas que já são comuns em partidas de futebol: “ Vai tomar no cu fedaputa”.
Olhei para aquilo, achei engraçado e não fiz força alguma para apagar.

Então os dizeres ficaram lá. Por dois dias, creio. E esse tempo curto acabou sendo o suficiente para  que  eu chegasse a algumas conclusões sobre como as pessoas se comportam diante de uma "palavra feia" desenhada num carro de mulher.

No primeiro dia, eu dirigia pela avenida Vilarinho, não muito longe de casa. Um moço vinha logo atrás de mim e percebi que ele buscava,com certa aflição,um espaço à minha esquerda. Parecia ansioso por me dizer algo.
Conseguiu. Me disse:
- Moça !
( Acho engraçado ouvir as pessoas me chamando de moça. Engraçado mesmo).
- Pois não? – Respondi de cara muito ruim.
- Você viu o que escreveram aí atrás, no seu vidro?
- Ah, no vidro.. vi sim... Por quê?
Ele me olhou com uma cara estranha. Provavelmente estava esperando que  eu perguntasse,ao mesmo tempo espantada e emputecida “  Vi não! O que escreveram??????”
- Você viu?? Mas é um palavrão!
-Vi... Foi meu irmão que escreveu. Achei engraçado e resolvi não apagar.
- Você também, hein? – Ele disse, com um jeito meio brincalhão. ----Tem irmão pequeno, né?
- Não... meu irmão tem 33 anos.
Houve um breve silêncio.
O homem então concluiu sua fala: - Nossa, quando eu vi o palavrão, fiz de tudo pra te avisar, porque vi que você era mulher e não é legal, né? Mulher ficar andando por aí com uma  palavra feia dessa escrita no vidro do carro...
 Aí fui eu que  olhei para ele com uma cara estranha. Fiquei pensando: “ Puxa, será que a mulher desse cara não tem cu?”
Apenas lhe disse: -Ah, moço, tem galho não... O senhor se divertiu, não foi? É bom para alegrar o povo, não é?
Naquele dia eu estava bem humorada. Sorte dele.

Então a luz verde do  semáforo se acendeu para todos nós que estávamos transitando por aquela via, naquela mão de direção, naquela manhã de sol frio  de inverno.


No dia seguinte, quase no mesmo horário, subindo a Bahia, mais uma vez num sinal vermelho, um rapaz todo musculoso,acompanhado por um exemplar fotocopiado de si mesmo,abriu o vidro do carro dele, buzinou para mim, o que me fez também abrir o vidro do meu carro, pois pensei  se tratar de coisa séria.
 Ele gritou, de uma maneira meio mal educada, meio ofendida, sei lá:

- Pega mal!
Olhei para ele com cara de pessoa que escuta, mas não entende bem as palavras.
- Pega mal! -Ele repetiu, gritando mais alto e fazendo uma expressão ainda mais feroz.
- Tá falando do que , menino? –perguntei, nem me lembrando da obscenidade lá de trás.

- O que tá escrito, pega mal pra uma mulher.

Então entendi. Era a tal da palavra feia.
 Me fingi de égua e perguntei o que estava escrito. Ele engrossou a voz para responder: - Vai tomar no cu fedaputa.
 Eu ri. E disse pra ele, antes de arrancar:
- E por que você não foi até agora?

Saudade



Que saudade daquela sensação de liberdade e felicidade que a gente só experimenta quando está longe, de férias, num outro país...
Hoje estou triste, cansada e com dor de cabeça. Por isso vou me resumindo por aqui, com esta fotografia que me eleva a 3000 metros de altitude, e enche meus pulmões do ar mais inacreditável que já respirei...

quarta-feira, junho 27, 2012

Mendigos



Não falo das criaturas encardidas que perambulam como mortos-vivos pelos caminhos urbanos, muitas das quais, em suas vestes quase bíblicas (que bem poderiam ser restos de túnicas de profetas do velho testamento, corroídas pela ação inexorável dos milênios), possuem o aspecto mineral das rochas escuras e impenetráveis. Não falo também de outra categoria de mendigos, a que é vegetal, cujas pernas se assemelham a grossos troncos tomados por lodo e líquens; cujas unhas compridas têm a aparência de raízes de árvores ancestrais e cuja cabeleira, enroscada de galhos, folhas e ninhos de pássaros,se comporta como se estivesse na cabeça de um antigo fauno.

Falo de mim e de um cão de raça indefinida que, certa noite, quis tornar-se minha sombra, enquanto eu protegia meus olhos das travessuras de uma nuvem de poeira excitada pela impetuosidade do vento, que anunciava tempestades.

Naquela noite, na rua por onde eu passava, só havia a movimentação dos carros, o meu caminhar apressado e amedrontado e os passos do cachorro atrás de mim.

 Até que tentei fugir, mas de nada adiantou andar mais depressa: sua velocidade se adequava à minha; ele tinha pernas compridas, patas grandes. Parecia estar faminto, mas tinha ainda muita energia para tal perseguição.

E assim continuamos: eu caminhando, protegendo os olhos com as mãos,e o cão no meu encalço, rápido como eu, mas de cabeça baixa, como se estivesse com vergonha. Isso durou até a chegada ao portão de grades de minha casa.

Quando parei para pegar as chaves, o cão parou ao meu lado. Olhei para ele. Ele me olhava também, com parte considerável da língua para fora daquela enorme boca que babava.

“Oi, Au-Au, nessa humilde casinha só cabem eu e eu. Você infelizmente vai ter que voltar para seu canil, ou para seu dono malvado que te deixou sozinho nessa noite esquisita, ou sei lá, para país dos cachorros abandonados”, eu disse.

O desgraçado balançou o rabo, e como todo mundo sabe, cachorro balançando o rabo quando ouve a voz da gente  significa cachorro sorrindo pra gente.

“Esse castelo de pulgas riu pra mim. Estou fodida”. Pensei, enquanto terminava de destrancar o portão. Os olhos sorridentes do cão sem dono pediam.

Antes de subir as escadas, ainda pude ver, através das grades, aquela cara que implorava. Solenemente fingi indiferença. Um banho quente me esperava.

No aconchego do lar, após  um dia cansativo, tudo estaria a salvo se não fosse o espinho no dedo em formato de olhar de cachorro, me atravessando a carne.

Então, algumas horas depois (eu já estava de pijama e de luzes apagadas) uma coisa forte como o vento me impeliu para fora da cama, me fez caminhar até a porta da sala, me fez descer as escadas e olhar através das grades do portão.

Ele ainda estava lá, me esperando na ventania.

Deixei-o entrar. Subimos até à cozinha. Na geladeira encontrei pedaços de carne congelada há muito tempo, que eu jamais comeria.

Enquanto acionava os comandos do microondas e esperava o tempo necessário, olhei de novo para o cachorro, cujo sorriso nos olhos havia se transformado em agradecimento. Ficamos nos confrontando, silenciosos. A noite cantava, lá fora, as desarmonias inquietas de ventos de tempestade.

Lembrei-me de cenas muito antigas: numa delas eu esperava que meu pai viesse me salvar de uma melancólica noite de Natal. Naquela triste época de privações sempre havia a esperança de que o retorno do pai a casa fosse coroado com o alimento conquistado com o suor de seu trabalho.

Ele não apareceu. Esperei, sentada sozinha numa calçada, de onde era possível ver o fim da rua,onde ele apontava sempre, virando uma esquina. Como implorei ao sol frio do fim do dia  por aquela presença adorada! Enfim, escureceu e eu ainda esperava, acreditando. Sei que eu tinha olhos de cão abandonado na noite. Eu sei.

Outra lembrança deixou-me triste como a chuva que já cuspia seu caos no silêncio da madrugada: minha mãe, num domingo remoto, me prometeu o paraíso.  Prometeu que ficaríamos ricas; bastava que fizéssemos as malas e viajássemos para a cidade onde ela havia nascido. Uma caravana viria nos buscar e nunca mais teríamos fome.

Fiquei abraçada à mala durante todo o domingo, no início, com a euforia de toda espera feliz, depois, no fim da tarde, com o aspecto de uma rosa morta.

Esse foi meu rito de passagem. Cresci. Só mais tarde, quando soube que doenças mentais existiam, pude perdoar minha mãe.

E quantas vezes  se repetiu em minha vida adulta esse triste processo que transforma perfumes de sonhos em enterros de flores?

Havia um cachorro na minha cozinha, me fitando com olhos marejados de amor. Eu Atirava-lhe pedaços de carne, pelos quais ele agradecia, com seu sorriso de balançar de rabo. Eu era sua deusa.

 Hoje fico pensando sobre sua raça. Seria um fila? Talvez. Mas, é estranho, certa vez li que filas são extremamente amáveis com os donos, e proporcionalmente agressivos com estranhos. Aquele era dócil como um vira-latas.

A solidão e a falta podem  transformar até mesmo os mais aristocráticos pedigrees.

Mas o que eu queria de verdade é que, mesmo escaldada e faminta, eu fosse capaz de manter a nobre e orgulhosa arrogância dos felinos.


terça-feira, junho 12, 2012

Potes de vidro

    Dia desses vi Samuel Medina ficar perplexo diante de minha resposta negativa a uma pergunta sua. A pergunta era: " Si, você queria viver de literatura?"
    Bem, de certa forma eu já vivo pois , até onde eu saiba, não é todo graduado em letras que pode afirmar ser um TNS-Literatura, ou traduzindo em miúdos, um Técnico de Nível Superior cuja especificidade é trabalhar com a leitura literária.
    Tudo bem, ao dizer "viver de literatura", não era disso que ele falava. Estava, é claro, se referindo ao ato de escrever e toda a paixão relacionada a ele; se referia ao sonho de ficar o dia inteiro na frente do computador inventando histórias, pensando atravessado, evocando belezas. E recebendo por isso.  Se tornar conhecido, entrar para as listas do cânone, ser reverenciado, amado pelos estudantes de letras,etc,etc,etc.
    Eu disse que não queria. Eu disse que não podia. Eu disse que nunca esperei por isso.
    Se trata de simples apego ao chão onde piso: pelo pouco que pude sentir, o mercado é demasiado castrador: exigências e mais exigências e a poda de parte de nossos sonhos, censurados pela patrulha do politicamente correto. E há também a arrogância dos que já escrevem para ganhar dinheiro: muitos parecem crer que são a autêntica reencarnação de uma entidade  (uma verdadeira trindade) denominada MachadodeAssisGuimarãesRosaClariceLispector.
     Preciso deixar claro que nada tenho contra o mercado: sem ele os livros não teriam chegado às bibliotecas onde me nutri a vida inteira. Mas escritores metidos são uma merda muito fedida. Eu os detesto.

    Embora eu tenha alguns pré-requisitos, como ser sapatão (e não tenha outros- é bom lembrar!- como  ser feia,) eu seria uma péssima escritora, enfim, há muita concorrência, falta de mecenato e, o mais importante:  muita incompetência para as histórias. Sim: não sou boa de histórias, além do mais. Quando as invento, elas são bem fuleiras, não têm força. Sou boa mesmo é em remoer a minha história, cutucando as grandes chagas vermelhas das minhas pequenas tragédias pessoais. E sei também extrair sonhos de canções encharcadas de melancolia. Mas minhas tragédias e meus sonhos interessam a poucos e, por isso, se eu fosse tentar competir no mercado, certamente morreria de fome.
     Escrevo para que alguns leiam e amem as belezas que moram em mim.  E além disso, escrever vez ou outra é como guardar a beleza num pote de vidro, até que ela vire perfume: a juventude, o amor, delicadezas sensuais sob lençois, os excessos da paixão,  banhos quentes em  noites de outono...
    Então, alguémque a gente conhece, ou não, um dia abre o pote e nossa solidão toda invade suas narinas...
    Então há comunicação. Mesmo se a gente já tiver morrido.

    Queria ganhar muito dinheiro mesmo  escrevendo roteiros para as novelas da Rede Globo, porque seria só mais uma trabalho e nada teria a ver com a poesia.
    Mas não sei escrever histórias. Só remoer as minhas...

       Há um tempo abri um pote de vidro desses bem perfumados.Lá dentro encontrei poemas que venho traduzindo e postando aqui neste blog. No post anterior há três deles: Melodia, O vendo das ruas e Ovelha perdida. Todos de Anne-Marie-de-Backer, poeta Belga ( não é francesa, descobri recentemente), nascida em 1908 e falecida em 1987. Os poemas já postados e os que ainda serão fazem parte da obra Le vent des rues, primeiro livro de Backer, o qual é composto por 15 poemas.      
    Todos serão traduzidos e disponibilizados aos poucos.

Vamos a eles.. Depois divago mais sobre a sensação de traduzi-los nestes belos dias de ventos outonais...

Migrações
 Existe tão belo país, existe,
 De tão doces florestas e hálito de anêmonas;
 E olhares felizes que evocam suas tristezas,
E, por vezes, palavras ternas, esmolas.
 Há navios que singram para ilhas
Onde os mais negros pássaros têm ouro sobre as asas.
Guardiã cega de tesouros inúteis,
Há caminhos onde a vida é real.
 A Rainha do Oriente dorme sob as próprias ataduras,
O Amor dorme com ela na outra extremidade da terra.
 Quem vai te perdoar por ser quem você é,
 e por errar ao vento das praias solitárias?
Quem vai te perdoar por ser quem você é,
Meus olhos, que você fechou às claridades excruciantes,
E você Sonho ruim, que assusta e que inquieta
A razão, sem piedade para com o segredo dos amantes?
 Quem vai me perdoar quando eu estiver cansada,
Desta jornada febril, onde costumo abandonar tudo o que amo,
Sem nunca encontrar o sol ou as distâncias;
Desta jornada febril, onde eu giro em tono de mim mesma?
Recomeço
Cabelos- de-vênus cor de malva em meio ao trigo,
Nosso luto docemente se prolonga.
Todas as flores que já conversaram comigo
Não me disseram nada além de mentiras
 Permaneci fria e serena
Submersa em uma vida onde nada é seguro
Nem a água que se bebe, nem a memória
Daqueles que amamos, nem o azul ultramarino.
 Preparei meu último adeus,
Pois é preciso que se lembre de nós
Neste salão de cortinas azuis
Embaladas por valsas antigas
 Como um réquiem para aqueles que morreram
 E que nunca mais serão vistos novamente
 O vento atirava contra a minha porta
 Neve e folhas negras
 Mas em um casto caminho aberto entre o trigo,
A luz encontrou meus sonhos
Todas as flores que já conversaram comigo
Não me disseram nada além de mentiras
 A canção silenciosa das flores vivas
 Ressuscita em mim a vontade
De experimentar a mudança das estações
E o traiçoeiro resplendor dos meses
 E tudo começa outra vez, eu sempre soube.
Que meu universo se recolha
 E a virgem negra recebeu
 Minha fronte abatida contra seu vestido
 Sabedoria, quando eu a agradeço
 Pela movimentação de meus dedos gelados
Essa cândida hipocrisia
Que me liberta do passado
 Ela vê o meu amor, maior
Que o silêncio e a música
 E espreita, com seus olhos enigmáticos
Meu coração, que se protege.

                         
Resignação
 Eu não sei onde eu vou te encontrar. Sem dúvida
 Dentro do quarto, selado com cortinas rendadas.
E você verá chegar do fundo das estradas
Peregrinos sem rumo, e suas vestes escuras.
 Eu não sei onde eu vou te encontrar. Respigador
À beira do trigo cortado onde eu estaria sentada,
 Ou talvez parecido com a Esperança feliz,
Apanhadora de lírios, apanhadora de cerejas.
 Você mantém meu rosto imóvel e minha alma também,
 Longe destes oceanos onde nossos desejos estão escondidos,
Com sua voz sagaz você me faria ter medo
Das florestas, das ondas pesadas e das flores ​​sem estrelas.
Eu teria medo das canções que dançam nas estradas,
E revelam segredos, como fazem os Ciganos
 Canções que imploram para que as escutemos
Ao bater delicadamente nas portas dos aldeões
  Mas há canções pelas quais eu poderia morrer:
Elas vêm dentro da noite deslizar sobre minha face,
Ou como os pássaros voam para fora da janela
Atravessando os perfumes que as tílias agitam
E que nada trazem, mas parecem tudo prometer.

                                                                     Anne-Marie-de-Backer


                                                                                       





terça-feira, maio 29, 2012

Poemas de Anne-Marie- de Backer

     No post anterior escrevi sobre uma busca: a paixão virulenta provocada em mim por dois versos isolados de uma poeta francesa desconhecida, que me fez sofrer tanto por não encontrar, em lugar nenhum, suas obras de poesia. Nem em Paris. Nem na Internet.
Mas é preciso dizer que a saudade apertou de novo, depois que escrevi sobre ela. E e reiniciei minha busca.
Dessa vez não foi difícil. Encontrei por um preço razoável num site, uma espécie de Estante Virtual americana, que só agora faz entregas também para o Brasil. Comprei de um livreiro do interior da França.
Meu coração tremeu estranhamente quando encontrei meu exemplar de Le vent des rues na caixinha de correio.
 Foi como reencontrar, na existência atual, alguém por quem eu houvesse morrido de amor em outra vida.
Traduzir Anne-Marie-de Backer tem sido algo sobrenatural. Desfaleço a cada verso.
Fazer com que sua poesia encontre minha língua materna é conversar com os sonhos dela, tão parecidos com os meus...
Compartilho com meus escassos leitores três  de seus poemas, os quais traduzi recentemente.
Espero que gostem.


O vento das ruas
O vento de inverno, que já me conhecia,
Antes mesmo que você me conhecesse,
Nesta noite tocou minhas mãos nuas
Com um beijo triste e sem promessas.
Sob o plátano de folhas mortas,
Neste impasse em que me encontro,
Ele fechou todas as portas,
Batendo sobre o azul das viagens

E arremessando em suas casas frias
Bancos e cadeiras de avós
Ele me obrigou a ficar sozinho
Entre um velho poço e um muro inflexível

Meu bem, a cidade é grande,
Os lugares são mornos e avermelhados,
Sem este vento forte que me observa
Pode ser que eu me renda

Ele dança na beira dos telhados e brinca
Com a sombra das chaminés
Enquanto acaricia a melancolia de meu rosto
E dos lábios que outrora você havia dado para mim.

E apodera-se, sem que alguém venha em meu socorro,
Da sombra do meu corpo, por ele arrebatado.
Que eu resista a ele ou me curve sob seu peso
Quando ele me espreitar através das portas

Assim, meus belos desejos de espaço,
_pássaros sobre neves glaciais
Não persistirão neste impasse
Em que o vento de inverno me atirou

Os rostos e seus mistérios,
Os longos prados, os caminhos em linha reta,
Eu os contemplei sobre a terra,
Das poças d’água que brilham

E minha juventude desapareceu
Sob as margaridas floridas.
Como a rua estava escura
Quando o vento de inverno me traiu!
                                                                                         Anne- Marie de Backer



Melodia
Toda a felicidade que seu rosto havia dado para mim
Eu a cantei, eu a chorei, como um mártir.
Nosso futuro não passa de um parque deserto,
Mas a sombra é azul e, dentro da noite, flores respiram.
Há dias e estações em que é preciso sonhar.
Tu, que vais embora deslizando nas torrenciais cabeleiras das águas, sobreviverás?
Pássaros negros giram ao redor de teu castelo
E a Sereia fechou os olhos sobre tuas margens arenosas
Há dias e estações em que é preciso viver.
Alguém me atou e eu segui as fendas desenhadas no mar.
Tu, que vais embora, pálido e cativo, sobreviverás
Quando o vento te agarrar em seus turbilhões?
Toda a felicidade que seu rosto havia dado para mim
Eu a expiei como uma culpa sem perdão
Há dias e estações que nos conduzem
Em direção a nossos remorsos, a nossos jardins abandonados.
                                                                               Anne-Marie- de- Backerá HHHHHH







Ovelha perdida

Depois que se tinha recolhido os frutos da terra ao celeiro;
E trazido de volta todos os rebanhos antes da tempestade;
Eu caminhei só e perdida através da aldeia;
Entre os abetos azuis anjos maus cantarolavam.
Dedos cautelosos apagam as claridades das janelas
Dedos ternos desprendem cabeleiras escuras;
Crianças terríveis rezam na sombra:
Tudo foi preservado do que devia ser.

Mas eu não conhecia o Refúgio ou o estábulo,
Nem o ombro tranquilo onde a face respousa,
E seus beijos tremem ainda sobre minhas mãos fechadas.
Eu aceitei os perigos da noite medonha,
Que germinou das florestas sem astros e sem rosas.

 
Depois que se tinha recolhido os frutos da terra e as bestas,
A novilha e a ovelha perdida ainda eram procuradas,
A aldeia dormia, calma, na vastidão,
E eu abri lentamente os braços para a tempestade.
                                                                                     Anne- Marie- de -Backer







sábado, maio 05, 2012

Chorando diante de uma mala desfeita



I


Ela me telefonou e disse: “Querida, vamos à Paris em abril”. Hesitei: não tinha dinheiro, nunca tive. Sabe-se lá se algum dia terei.

A vida é curta e o mundo é vasto, eu sei. Viajar é preciso. Mas há as despesas domésticas, vastas como o mundo, e um salário ainda mais curto que a vida. Além disso, sempre houve as narrativas maternas que, durante muito tempo, castraram meus desejos cosmopolitas: acidentes nas estradas, pessoas perdidas, que nunca mais voltaram para casa, a preocupação excessiva com meu delicado estômago, quando sujeito ao movimento curvilíneo dos veículos.

Nem às excursões da escola eu ia. Sempre ouvia a mãe dizer: “Soube de um caso, certa vez, de um grupo de mocinhas que foi fazer uma viagem para uma gruta, o ônibus caiu numa ribanceira e não sobrou ninguém”. Às vezes a história sofria algumas corruptelas: “Soube de um caso, certa vez, de umas mocinhas que foram viajar, o ônibus estragou no meio da estrada, de madrugada, perto de um matagal, o povo teve de dormir ali mesmo, enquanto esperava o socorro mecânico; e as mocinhas foram todas estupradas e mortas”...

“Ih, mãe, para!” Eu respondia já desanimada. Ela prosseguia: “Você enjoa, minha filha. Vai ficar passando mal fora de casa. Isso é muito ruim. Passar mal e não poder voltar pra casa quando a gente quer é uma tristeza”.

Depois de me libertar da tutela da minha querida velhinha, com a chegada da idade adulta, viajei um pouco. E fui, paulatinamente, perdendo o medo incutido na infância. Não por completo, é claro. Porque as histórias de mãe grudam na pele, como cheiro de cebola. Para o bem, ou para o mal.

Mas minha namorada, certa noite, me ligou e disse: “Vamos, querida, à Paris em abril”. E eu tive que concordar, equilibrando-me entre a estranheza, a euforia e o medo de não conseguir pagar as contas no final do mês.

Era hora então de fazer os preparativos para a viagem. E, entre eles, é claro, havia a necessidade de selecionar algumas imagens, as imagens certas do que eu queria ver, para evitar possíveis decepções. Na época eu estava lendo Proust, justamente aquele episódio de Em Busca do tempo perdido em que o protagonista chega ao balneário de Balbec, e sofre uma das grandes decepções de sua vida. O fato é que Marcel tinha passado bons momentos de sua infância lendo livros sobre a Normandia medieval e  pensou que ao chegar a Balbec encontraria as imagens adoradas vistas nos livros. Rochedos. Pássaros estranhos e escuros sobrevoando o mar gélido. O canto melancólico dessas aves. Mas não.  Seu sonho havia perdido o trem da modernidade. Balbec, a da vida real, tinha um hotel à beira mar, repleto de turistas em férias. Sim, Alain de Botton estava certo ao dizer que quando o adolescente Marcel foi a Balbec pela primeira vez, saiu de casa com as imagens erradas na cabeça.

O que eu queria ver? Torre? Não.  Até queria ver sim, mas não apaixonadamente. Arco? Também não tinha nada a ver com meus afetos. Trocadéro? Ah, eu nem sabia o que era isso. Notre Dame? Talvez. Combinava mais com um certo misticismo que desconfio existir em mim.

Depois de muito ruminar cheguei a algumas conclusões. Quando Raquel me perguntou a respeito do que eu queria ver em Paris, eu disse: “Quero ir ao Pèrre Lachaise, ver o túmulo do Proust; quero encontrar os livros de Anne- Marie de Backer e, se possível, quero entrar na Saint- Chapelle.”.

É claro que a ordem aqui não importava: uma vez que eu faria tal viagem, ver o túmulo de Proust ou encontrar a poesia de Anne-Marie de Backer tinha a mesma urgência para mim. Nossa viagem se estenderia também à Londres , e meu único desejo ali, era conhecer a Galeria dos sussurros, que fica na Igreja de Saint Paul e é famosa por sua acústica “impressionante”.

II
Anne- Marie de Backer.

Conheci Anne Marie de Backer um ano antes da viagem, lendo um livro do Bachelard, chamado A Poética do devaneio. Lindo, lindo livro. Num capítulo intitulado “O cogito do sonhador”, fui ferida de morte por esses versos dela:

Deixou-me tudo o que preciso para viver:
Seus cravos negros e o seu mel no meu sangue

 E ainda:
A begônia de prata se desfolha no fundo das fábulas

Desfaleci.  E é claro que saí a procura de poemas inteiros dela, pelas tão bem sinalizadas avenidas da internet.

Nada. Apenas algumas informações biográficas, entre as quais estavam incluídos os nomes de suas obras de poesia. Nomes que me deixaram ainda mais inquieta, imersa em uma espécie de angústia que a gente só tem quando há a promessa de uma beleza desconhecida, e o desejo que tal beleza venha conversar com nossas feridas, com nossa orfandade, com nossa incurável solidão. A dança do cisne negro; As estrelas de novembro; O vento das ruas; A  erva e o fogo; A dama de Elche; Estrela Lúcifer; Urtigas com chamas azuis; O Sol da ventania...

Sonhei, sonhei muito com esses títulos, publicados entre os anos de 1952 e 1975.

Depois da decepção com o Google (o oráculo de Delfos da pós-modernidade) por causa de seu quase silêncio diante do desespero de minha busca, decidi procurar as obras para compra on-line.  Visitei sites de livrarias francesas, visitei o site da editora que publicou os livros de Backer, tentei a loja virtual da FNAC francesa e até apelei para a Amazon. Nada. Ou melhor, pouco, muito pouco: apenas um livro de crítica sobre sua poesia, o qual não me interessava.

Esqueci por um tempo Anne- Marie de Backer, como se esquece do olhar de alguém que desceu do metrô numa estação antes da gente, fazendo a gente pensar seriamente sobre universos paralelos, enquanto uma chuva fina cai sobre os trilhos, e faz doer com mais força em algum lugar, dentro, a saudade do que nunca existiu.

Quando a possibilidade da viagem surgiu, o desejo retornou impaciente. Eu sabia que o túmulo do Proust estaria lá onde havia sido colocado; sabia que a Saint-Chapelle não tinha migrado para a Ucrânia e sabia que em Londres, a cúpula da Saint Paul estaria a minha disposição, desde que eu estivesse disposta a pagar 6 libras por um ingresso. Mas, e minha poeta? Eu a encontraria?

Em Paris os dias não foram os mais felizes da minha vida. Fui acompanhada, durante todo o período  de estada na cidade, por uma velha dor de coluna, que não me importunava já há algum tempo. Minhas caminhadas eram sofridas, caminhadas de dia inteiro, uma via- sacra de museus e monumentos, sentindo algo deslocar-se na região dos meus quadris.

Foi bonito ver o túmulo do Proust; fiquei em silêncio, emocionada. Quase desmaiei na Saint Chapelle quando entrei na nave, cujas paredes são constituídas somente por belíssimos vitrais, por onde a luz passa, virando puro sonho, lá dentro. E quando fui à Londres, me decepcionei muito com a galeria de acústica “incrível”. Mas isso é outra história.

O fato é que, em Paris, outra dor veio andar de mãos dadas com os lastimáveis sofrimentos de meu corpo: não encontrei os livros de poesia de Anne-Marie de Backer.

Era dramática a forma como eu percorria a Rive Gauche, passando por cada barraca verde, onde livros carcomidos estavam expostos.  “ Bon jour! Je cherche des livres de Anne-Marie de Backer”; “ Vous avez des livres de Anne-Marie de Backer?”,perguntei, ínumeras vezes, num tímido, mas bem pronunciado francês. As respostas negativas pareciam fazer minha dor lombar ficar mais forte. Um dos vendedores, simpático senhor de boina e colete, me disse que era difícil mesmo, encontrá-la. “Talvez no Quartier Latin”, ele disse.

No dia seguinte fomos ao lugar indicado . Eu e Raquel entramos em grandes e pequenas livrarias. E o mais incrível é que os vendedores nem sabiam quem era a poeta. Uma moça até me perguntou: “Cette poétesse que vous recherche... Elle est française?”. “Oui, oui”. Eu respondia, com o coração cada vez mais vazio.

Enfim, voltamos para casa, com a mala cheia de discos, de livros de arte, de perfumes e de lembrancinhas para os queridos. Anne- Marie de Backer deve ter ficado no fundo de alguma caixa de livros amontoados, que eu não tive tempo de revirar...

No Brasil, ainda procurei por ela. E encontrei. Num site de uma “agência- detetive”, cuja missão é encontrar livros raros espalhados pelo mundo afora e vender para desesperados, como eu, pelos olhos de nossas caras. O mais barato era a Dança do Cisne negro, numa publicação em formato de periódico, com míseras 28 páginas. Preço: 200 reais.

Confesso quase ter caído em tentação. No entanto, a experiência de algumas pequenas tragédias afetivas foi o suficiente para que, após longos processos de cicatrização, eu começasse a olhar com mais desconfiança para os excessos do amor.


Hoje, Anne-Marie de Backer é, para mim, apenas mais um vitral estilhaçado na minha catedral de saudades.