terça-feira, maio 29, 2012

Poemas de Anne-Marie- de Backer

     No post anterior escrevi sobre uma busca: a paixão virulenta provocada em mim por dois versos isolados de uma poeta francesa desconhecida, que me fez sofrer tanto por não encontrar, em lugar nenhum, suas obras de poesia. Nem em Paris. Nem na Internet.
Mas é preciso dizer que a saudade apertou de novo, depois que escrevi sobre ela. E e reiniciei minha busca.
Dessa vez não foi difícil. Encontrei por um preço razoável num site, uma espécie de Estante Virtual americana, que só agora faz entregas também para o Brasil. Comprei de um livreiro do interior da França.
Meu coração tremeu estranhamente quando encontrei meu exemplar de Le vent des rues na caixinha de correio.
 Foi como reencontrar, na existência atual, alguém por quem eu houvesse morrido de amor em outra vida.
Traduzir Anne-Marie-de Backer tem sido algo sobrenatural. Desfaleço a cada verso.
Fazer com que sua poesia encontre minha língua materna é conversar com os sonhos dela, tão parecidos com os meus...
Compartilho com meus escassos leitores três  de seus poemas, os quais traduzi recentemente.
Espero que gostem.


O vento das ruas
O vento de inverno, que já me conhecia,
Antes mesmo que você me conhecesse,
Nesta noite tocou minhas mãos nuas
Com um beijo triste e sem promessas.
Sob o plátano de folhas mortas,
Neste impasse em que me encontro,
Ele fechou todas as portas,
Batendo sobre o azul das viagens

E arremessando em suas casas frias
Bancos e cadeiras de avós
Ele me obrigou a ficar sozinho
Entre um velho poço e um muro inflexível

Meu bem, a cidade é grande,
Os lugares são mornos e avermelhados,
Sem este vento forte que me observa
Pode ser que eu me renda

Ele dança na beira dos telhados e brinca
Com a sombra das chaminés
Enquanto acaricia a melancolia de meu rosto
E dos lábios que outrora você havia dado para mim.

E apodera-se, sem que alguém venha em meu socorro,
Da sombra do meu corpo, por ele arrebatado.
Que eu resista a ele ou me curve sob seu peso
Quando ele me espreitar através das portas

Assim, meus belos desejos de espaço,
_pássaros sobre neves glaciais
Não persistirão neste impasse
Em que o vento de inverno me atirou

Os rostos e seus mistérios,
Os longos prados, os caminhos em linha reta,
Eu os contemplei sobre a terra,
Das poças d’água que brilham

E minha juventude desapareceu
Sob as margaridas floridas.
Como a rua estava escura
Quando o vento de inverno me traiu!
                                                                                         Anne- Marie de Backer



Melodia
Toda a felicidade que seu rosto havia dado para mim
Eu a cantei, eu a chorei, como um mártir.
Nosso futuro não passa de um parque deserto,
Mas a sombra é azul e, dentro da noite, flores respiram.
Há dias e estações em que é preciso sonhar.
Tu, que vais embora deslizando nas torrenciais cabeleiras das águas, sobreviverás?
Pássaros negros giram ao redor de teu castelo
E a Sereia fechou os olhos sobre tuas margens arenosas
Há dias e estações em que é preciso viver.
Alguém me atou e eu segui as fendas desenhadas no mar.
Tu, que vais embora, pálido e cativo, sobreviverás
Quando o vento te agarrar em seus turbilhões?
Toda a felicidade que seu rosto havia dado para mim
Eu a expiei como uma culpa sem perdão
Há dias e estações que nos conduzem
Em direção a nossos remorsos, a nossos jardins abandonados.
                                                                               Anne-Marie- de- Backerá HHHHHH







Ovelha perdida

Depois que se tinha recolhido os frutos da terra ao celeiro;
E trazido de volta todos os rebanhos antes da tempestade;
Eu caminhei só e perdida através da aldeia;
Entre os abetos azuis anjos maus cantarolavam.
Dedos cautelosos apagam as claridades das janelas
Dedos ternos desprendem cabeleiras escuras;
Crianças terríveis rezam na sombra:
Tudo foi preservado do que devia ser.

Mas eu não conhecia o Refúgio ou o estábulo,
Nem o ombro tranquilo onde a face respousa,
E seus beijos tremem ainda sobre minhas mãos fechadas.
Eu aceitei os perigos da noite medonha,
Que germinou das florestas sem astros e sem rosas.

 
Depois que se tinha recolhido os frutos da terra e as bestas,
A novilha e a ovelha perdida ainda eram procuradas,
A aldeia dormia, calma, na vastidão,
E eu abri lentamente os braços para a tempestade.
                                                                                     Anne- Marie- de -Backer







sábado, maio 05, 2012

Chorando diante de uma mala desfeita



I


Ela me telefonou e disse: “Querida, vamos à Paris em abril”. Hesitei: não tinha dinheiro, nunca tive. Sabe-se lá se algum dia terei.

A vida é curta e o mundo é vasto, eu sei. Viajar é preciso. Mas há as despesas domésticas, vastas como o mundo, e um salário ainda mais curto que a vida. Além disso, sempre houve as narrativas maternas que, durante muito tempo, castraram meus desejos cosmopolitas: acidentes nas estradas, pessoas perdidas, que nunca mais voltaram para casa, a preocupação excessiva com meu delicado estômago, quando sujeito ao movimento curvilíneo dos veículos.

Nem às excursões da escola eu ia. Sempre ouvia a mãe dizer: “Soube de um caso, certa vez, de um grupo de mocinhas que foi fazer uma viagem para uma gruta, o ônibus caiu numa ribanceira e não sobrou ninguém”. Às vezes a história sofria algumas corruptelas: “Soube de um caso, certa vez, de umas mocinhas que foram viajar, o ônibus estragou no meio da estrada, de madrugada, perto de um matagal, o povo teve de dormir ali mesmo, enquanto esperava o socorro mecânico; e as mocinhas foram todas estupradas e mortas”...

“Ih, mãe, para!” Eu respondia já desanimada. Ela prosseguia: “Você enjoa, minha filha. Vai ficar passando mal fora de casa. Isso é muito ruim. Passar mal e não poder voltar pra casa quando a gente quer é uma tristeza”.

Depois de me libertar da tutela da minha querida velhinha, com a chegada da idade adulta, viajei um pouco. E fui, paulatinamente, perdendo o medo incutido na infância. Não por completo, é claro. Porque as histórias de mãe grudam na pele, como cheiro de cebola. Para o bem, ou para o mal.

Mas minha namorada, certa noite, me ligou e disse: “Vamos, querida, à Paris em abril”. E eu tive que concordar, equilibrando-me entre a estranheza, a euforia e o medo de não conseguir pagar as contas no final do mês.

Era hora então de fazer os preparativos para a viagem. E, entre eles, é claro, havia a necessidade de selecionar algumas imagens, as imagens certas do que eu queria ver, para evitar possíveis decepções. Na época eu estava lendo Proust, justamente aquele episódio de Em Busca do tempo perdido em que o protagonista chega ao balneário de Balbec, e sofre uma das grandes decepções de sua vida. O fato é que Marcel tinha passado bons momentos de sua infância lendo livros sobre a Normandia medieval e  pensou que ao chegar a Balbec encontraria as imagens adoradas vistas nos livros. Rochedos. Pássaros estranhos e escuros sobrevoando o mar gélido. O canto melancólico dessas aves. Mas não.  Seu sonho havia perdido o trem da modernidade. Balbec, a da vida real, tinha um hotel à beira mar, repleto de turistas em férias. Sim, Alain de Botton estava certo ao dizer que quando o adolescente Marcel foi a Balbec pela primeira vez, saiu de casa com as imagens erradas na cabeça.

O que eu queria ver? Torre? Não.  Até queria ver sim, mas não apaixonadamente. Arco? Também não tinha nada a ver com meus afetos. Trocadéro? Ah, eu nem sabia o que era isso. Notre Dame? Talvez. Combinava mais com um certo misticismo que desconfio existir em mim.

Depois de muito ruminar cheguei a algumas conclusões. Quando Raquel me perguntou a respeito do que eu queria ver em Paris, eu disse: “Quero ir ao Pèrre Lachaise, ver o túmulo do Proust; quero encontrar os livros de Anne- Marie de Backer e, se possível, quero entrar na Saint- Chapelle.”.

É claro que a ordem aqui não importava: uma vez que eu faria tal viagem, ver o túmulo de Proust ou encontrar a poesia de Anne-Marie de Backer tinha a mesma urgência para mim. Nossa viagem se estenderia também à Londres , e meu único desejo ali, era conhecer a Galeria dos sussurros, que fica na Igreja de Saint Paul e é famosa por sua acústica “impressionante”.

II
Anne- Marie de Backer.

Conheci Anne Marie de Backer um ano antes da viagem, lendo um livro do Bachelard, chamado A Poética do devaneio. Lindo, lindo livro. Num capítulo intitulado “O cogito do sonhador”, fui ferida de morte por esses versos dela:

Deixou-me tudo o que preciso para viver:
Seus cravos negros e o seu mel no meu sangue

 E ainda:
A begônia de prata se desfolha no fundo das fábulas

Desfaleci.  E é claro que saí a procura de poemas inteiros dela, pelas tão bem sinalizadas avenidas da internet.

Nada. Apenas algumas informações biográficas, entre as quais estavam incluídos os nomes de suas obras de poesia. Nomes que me deixaram ainda mais inquieta, imersa em uma espécie de angústia que a gente só tem quando há a promessa de uma beleza desconhecida, e o desejo que tal beleza venha conversar com nossas feridas, com nossa orfandade, com nossa incurável solidão. A dança do cisne negro; As estrelas de novembro; O vento das ruas; A  erva e o fogo; A dama de Elche; Estrela Lúcifer; Urtigas com chamas azuis; O Sol da ventania...

Sonhei, sonhei muito com esses títulos, publicados entre os anos de 1952 e 1975.

Depois da decepção com o Google (o oráculo de Delfos da pós-modernidade) por causa de seu quase silêncio diante do desespero de minha busca, decidi procurar as obras para compra on-line.  Visitei sites de livrarias francesas, visitei o site da editora que publicou os livros de Backer, tentei a loja virtual da FNAC francesa e até apelei para a Amazon. Nada. Ou melhor, pouco, muito pouco: apenas um livro de crítica sobre sua poesia, o qual não me interessava.

Esqueci por um tempo Anne- Marie de Backer, como se esquece do olhar de alguém que desceu do metrô numa estação antes da gente, fazendo a gente pensar seriamente sobre universos paralelos, enquanto uma chuva fina cai sobre os trilhos, e faz doer com mais força em algum lugar, dentro, a saudade do que nunca existiu.

Quando a possibilidade da viagem surgiu, o desejo retornou impaciente. Eu sabia que o túmulo do Proust estaria lá onde havia sido colocado; sabia que a Saint-Chapelle não tinha migrado para a Ucrânia e sabia que em Londres, a cúpula da Saint Paul estaria a minha disposição, desde que eu estivesse disposta a pagar 6 libras por um ingresso. Mas, e minha poeta? Eu a encontraria?

Em Paris os dias não foram os mais felizes da minha vida. Fui acompanhada, durante todo o período  de estada na cidade, por uma velha dor de coluna, que não me importunava já há algum tempo. Minhas caminhadas eram sofridas, caminhadas de dia inteiro, uma via- sacra de museus e monumentos, sentindo algo deslocar-se na região dos meus quadris.

Foi bonito ver o túmulo do Proust; fiquei em silêncio, emocionada. Quase desmaiei na Saint Chapelle quando entrei na nave, cujas paredes são constituídas somente por belíssimos vitrais, por onde a luz passa, virando puro sonho, lá dentro. E quando fui à Londres, me decepcionei muito com a galeria de acústica “incrível”. Mas isso é outra história.

O fato é que, em Paris, outra dor veio andar de mãos dadas com os lastimáveis sofrimentos de meu corpo: não encontrei os livros de poesia de Anne-Marie de Backer.

Era dramática a forma como eu percorria a Rive Gauche, passando por cada barraca verde, onde livros carcomidos estavam expostos.  “ Bon jour! Je cherche des livres de Anne-Marie de Backer”; “ Vous avez des livres de Anne-Marie de Backer?”,perguntei, ínumeras vezes, num tímido, mas bem pronunciado francês. As respostas negativas pareciam fazer minha dor lombar ficar mais forte. Um dos vendedores, simpático senhor de boina e colete, me disse que era difícil mesmo, encontrá-la. “Talvez no Quartier Latin”, ele disse.

No dia seguinte fomos ao lugar indicado . Eu e Raquel entramos em grandes e pequenas livrarias. E o mais incrível é que os vendedores nem sabiam quem era a poeta. Uma moça até me perguntou: “Cette poétesse que vous recherche... Elle est française?”. “Oui, oui”. Eu respondia, com o coração cada vez mais vazio.

Enfim, voltamos para casa, com a mala cheia de discos, de livros de arte, de perfumes e de lembrancinhas para os queridos. Anne- Marie de Backer deve ter ficado no fundo de alguma caixa de livros amontoados, que eu não tive tempo de revirar...

No Brasil, ainda procurei por ela. E encontrei. Num site de uma “agência- detetive”, cuja missão é encontrar livros raros espalhados pelo mundo afora e vender para desesperados, como eu, pelos olhos de nossas caras. O mais barato era a Dança do Cisne negro, numa publicação em formato de periódico, com míseras 28 páginas. Preço: 200 reais.

Confesso quase ter caído em tentação. No entanto, a experiência de algumas pequenas tragédias afetivas foi o suficiente para que, após longos processos de cicatrização, eu começasse a olhar com mais desconfiança para os excessos do amor.


Hoje, Anne-Marie de Backer é, para mim, apenas mais um vitral estilhaçado na minha catedral de saudades.