quarta-feira, setembro 26, 2012

Não era

Não era vento:
era ser forte
era ser fraco
e, às vezes, sem rumo.

Não era chama:
Era um gosto na língua
Era umidade entre as pernas
Era angústia de amar.

Não era outono:
era a superfície da pele
alcatifada por rugas.

Não era um trilho de trem
uma estação rodoviária
um aeroporto
nem mesmo o mar
com um barco distante:
era a vida que restava
acorrentada à ausência.

Não era chuva:
era tristeza pura.
E só.

segunda-feira, setembro 24, 2012

Profanação na teia

Tirar a roupa dela
enquanto vermelha lua
arde.

Romper cascas, desfiar casulos.

Contrair-me em
aracnídeo inseto.

Patas e pelos, perfurar
a pele profanada

E ela se contorce toda
Presa em minha teia:
Era pétala amputada
tornou-se flor inteira.

sábado, setembro 22, 2012

Pizarnik


Vou lendo a Alejandra aos pouquinhos e traduzindo, aos pouquinhos também. Em breve voltarei com a Backer. Já estou sentindo falta!


Nemo

Não está longe o dia de raro verdor
em que cantarei à lua odiada que dá luz à minha espessa cabeça cortada à navalha
que dá luz aos ventos brutais
às flores agudas que ardem nos dedos sob as benignas ataduras
à estrela que  se esconde quando é chamada
à chuva úmida girando em sua nudez repulsiva
ao sol amarelo que traspassa as peles marcando escuros traços
ao despertador, enviado do infernos interrompendo belos sonhos
aos mares gelados arrastando lixo ondas brilhos dourados ardores nos olhos.

                                                                          ( Alejandra Pizarnik in: Poesía Completa. Lumen: Barcelona, 2011)

Versão de Simone Teodoro

domingo, setembro 16, 2012

Gentileza, o caralho!

No prédio onde trabalho tem um caixa eletrônico disputadíssimo. A concorrência pela máquina aumenta, obviamente, nos dias posteriores ao do pagamento, o abençoado, sacrossanto e desejado quinto dia útil do mês.
Dia desses encontrei-o vazio. Nem acreditei. Eu tinha um envelope de faturas a pagar, algumas delas com vencimento para o dia seguinte, outras já estavam até atrasadas. Peguei meu pacotinho e caminhei rumo ao caixa. Tinha que ser coisa rápida, pois eu teria uma reunião em 15 minutos.
Então fui pagando, uma por uma, mantendo a calma até mesmo quando a máquina se recusava a ler alguns códigos de barra, ou a reconhecer meu cartão, acontecimentos que me obrigavam a repetir toda a operação.
Eu estava calma, coisa rara também, de uns anos pra cá.
Ouvi rumores de vozes. Eram três mulheres que formavam uma fila de espera para utilizar o terminal.
Elas falavam mal de mim! Falavam da demora, do tanto de coisa que eu pagava, que era um absurdo, um lugar com apenas um caixa eletrônico "permitir" que tantas operações fossem feitas por uma pessoas só.
Como elas ainda não tinham me dirigido a palavra, apenas continuei o que estava fazendo. Elas estavam como sorte, pois mesmo  com muitas faturas, costumo fazer tudo bem rapidinho,isto é, quando a máquina colabora.
Mas as donas continuaram lá com a conversa chata e deprimente típica dos que se sentem injustiçados. Então uma delas falou comigo.
-Moça!
-Oi?- Me virei para elas, agindo como se pela primeira vez na vida tivesse orelhas e ouvidos.
- Vai demorar?
-Vou. Olha o pacotão de coisas que tenho pra pagar.Se vocês estiverem com muita pressa não aconselho esperar.
- Mas eu preciso fazer um saque!- Ela protestou, como se eu fosse culpada pelo atraso que o fato de eu ter chegado primeiro ao caixa eletrônico ia provocar na  vida dela. Esse protesto era também uma forma de sugerir que eu a deixasse entrar na minha frente.
-E eu preciso pagar minhas contas!- Eu disse- Além disso, tenho que voltar ao trabalho. 
Então outra  mulher, provavelmente amiga da que falou comigo primeiro, levantou a voz em sua defesa:
- Mas ela tem que bater o ponto!
Minha calma foi pelos ares. Parei tudo, olhei para aquelas três caras de bosta e disse:
-Dona, eu não tenho nada a ver com isso!
E continuei fazendo a transfusão do meu suado dinheirinho para  contas bancárias alheias.




segunda-feira, setembro 10, 2012

Blue em rádio abandonado

Segunda-feira é dia de ir à casa da mãe para fragmentar um de seus comprimidos. Para isso, levo comigo uma pequena ferramenta de plástico, cuja lâmina interior faz o serviço da separação. E é estranho: toda vez que coloco o remédio lá dentro e pressiono a lâmina contra ele, tenho a sensação de estar partindo em dois também o meu coração. E quando saio da casa da mãe e a vejo , ao longe, me olhando 
pelo portão entreaberto, me perguntando com os olhos por que motivo estou indo embora tão cedo, é como se a metade do meu coração estivesse ficando lá, com ela.
Ao chegar em casa, fico me indagando se o blue melancólico que insiste em tocar na parte que veio comigo também está tocando lá, na parte que ficou, como num radinho abandonado.