quinta-feira, janeiro 17, 2013

Letícia

Letícia só tem dois anos e me pergunto: como pode caber tanto sofrimento numa pessoa tão pequenina?
Ela estava sentada ao redor de uma mesa de biblioteca, ouvindo histórias. Os olhos úmidos e a voz rouca denunciavam o choro de uma manhã inteira.
Não de muito longe, eu observava seu nervosismo, sua tensão e a inquietude em seus olhos.
Letícia, pequena, inquieta e triste.
Então uma caixa grande, com lápis de todas as cores, foi colocada sobre a mesa.
Mas Letícia não quis saber deles. Preferiu um vidro de cola, que foi aberto sem querer por suas mãos impacientes, o que fez com que o conteúdo se espalhasse por todos os lados.
A garota lidou com o acontecimento como os nervosos lidam com as tragédias: inflou pulmões, vibrou cordas vocais e explodiu num choro gritado e contínuo, enquanto apertava os olhos entre as pálpebras encharcadas e ficava vermelha como uma pimenta brava.
A avó até que tentou fazer a menina parar de chorar, mas em vão. Não, as flores lá de fora não eram belas o bastante para compensar a tristeza de Letícia, e  nem era suave o canto dos pássaros que estavam separados de nós por um pequena distância, reforçada pelo vidro das janelas.
Letícia, tão inconsolável. Por quê?
Meu coração se encheu de ternura. Me aproximei um pouco e experimentei lhe oferecer um lápis azul. Ela não quis.
Então resolvi fazer cena: quebrei a ponta do lápis e dei início ao meu drama:
_ Meu Deus! A ponta do lápis quebrou! E agora? Como vou colorir meu desenho? E agora, Letícia?
Ela de repente se calou e seu olhar, de forma surpreendente, acolheu meu apelo, como se ela entendesse a  dor que eu fingia.
_ E agora, Letícia? E agora?
Ela chegou muito perto. Olhava com gravidade, ora para mim, ora para meu lápis ferido.
Um menino, que estava por ali acompanhando a performance, disse que tinha a solução para meu problema. Um apontador!
Continuei fingindo, dessa vez exultante:
- Um apontador, Letícia! Ele tem um apontador! A gente vai poder fazer a ponta nascer outra vez!
Dizendo isso, comecei a  apontar o lápis, me deliciando com a força de encantamento que nem eu mesma sabia que tinha. Letícia não desgrudava os olhos dos movimentos de minhas mãos, como que enfeitiçada.
- Letícia, olha! A ponta nasceu de novo! Agora posso colorir meu desenho! Ela estendeu as mãos. Queria pegar no lápis, queria tocar no milagre.
Então ela voltou para a mesa e fez um desenho.
Silenciosa, ela era toda rouquidão.

2

Quando eu estiver triste, triste de não ter mais jeito;quando eu estiver triste e sem Parságada para onde ir; quando meus potes escaparem de minhas mãos e meus sonhos se sujarem de terra; quando eu estiver chorando, quando eu estiver gritando, eu desejo que venha alguém, mesmo que minta, eu desejo que venha alguém e faça nascer outra vez a ponta azul do meu lápis de colorir.


terça-feira, janeiro 01, 2013

Diários e fins de ano

Quando eu era adolescente gostava de anotar minha vida em diários. Guardo comigo muitos deles, num saco plástico, no fundo do armário.
E era regra:  na última página , a do dia 31 de dezembro, eu registrava uma espécie de balanço anual, com retrospectivas e avaliações.
Tentei manter tal hábito na vida adulta, mas fracassei. Ou melhor, continuo fracassando,pois ainda insisto em comprar , a cada início de ano, uma nova agenda, que logo abandono.
Minha agenda-diário do ano que acabou de acabar só foi rabiscada até o mês de maio. Depois disso as anotações que há nela se resumem a lembretes de reuniões chatas de trabalho e de tarefas mecânicas. 

Mas vamos ao que ficou na memória,  não necessariamente em ordem cronológica, com ou sem anotações:


Terminei o Proust ( que ainda reverbera dentro do meu corpo e acho que isso vai ficar acontecendo até o meu último dia de vida nessa bosta de mundo que de vez em quando é tão bonito que chega a doer).

Reclamei até: de problemas conjugais dos mais variados; de menstruação, de cólicas e de outras dores do feminino; do trânsito; da falta de tempo pra ser feliz, por causa do trabalho.
Assisti a filmes, mas como não anotei, não me lembro de todos. Nada que me fizesse ficar chapada. Vi muitas coisas dos primórdios do cinema: Lumières, Meliès, Griffith. Vi Cabíria, O grande roubo do trem, essas coisas. Vi também uma dezena de filmes do Hitchcock e descobri que é muito mais divertido procurá-lo em seus filmes do que procurar o Wally no meio da multidão desenhada naqueles livros infantis. E por falar em Wally, vi Medianeras e achei uma fofura.( Quando fui à Argentina, entrei naquele planetário e foi lindo).

Em maio fui ao Chile. Visitei Santiago, subi cerros, caminhei pela 


Alameda, comi deliciosamente frutos do mar no mercado central da cidade. Fui à Cordilheira dos Andes, fiz guerra de neve,tirei fotos lindíssimas, dormi num quarto com calefator, fui à Viña del Mar, onde mergulhei meus pés, com tênis e tudo, no gelado Pacífico e caminhei com Raquel por praias maravilhosas. No mesmo dia partimos para a exótica Valparaíso, a cidade dos curiosos astensores, que levam para os cerros em profusão. Fomos de ônibus a uma das casas de Neruda, na parte alta da cidade, de onde se vê o porto lá embaixo e barcos indo embora. Na estação de ônibus, quando esperávamos para retornar a Santiago, Raquel sorriu para mim, enquanto tomava um café-expresso. Fazia frio. E o sorriso dela me fez sonhar  com o quarto, com a noite, com os cobertores e com o corpo dela  dando sentido à existência do meu.


A viagem acabou. E com ela, as férias. E ao retornar fui surpreendida pela ameaça da perda, quando ao visitar minha mãe encontrei-a em meio a uma crise respiratória, agravada por um forte resfriado, um enfisema  pulmonar  e sinais de insuficiência cardíaca.Os dias que se seguiram foram os piores do meu ano. Foi uma semana inteira de enfermaria, vendo minha mãe enfraquecida ( ela que sempre foi meu exemplo de força), nervosa, brigando comigo quando eu fechava a porta do banheiro , ou diante de minha excessiva preocupação com a borracha do soro, que ela arrancava toda vez que se levantava.
Depois ela voltou para casa e foi minha vez de ficar doente: a pior gripe da minha vida, até hoje. Dias sem pronunciar uma palavra, por causa da afonia. Provavelmente resultado das noites de vigília naquela enfermaria gelada. Foi a parte do ano em que mais tive medo.
Depois passou. E maio, finalmente acabou.

Li muita poesia. Pizarnik e Backer chegaram para mim da Colômbia e da França, respectivamente.

Quase não li quadrinhos. ( Um Moebius, foi o que li de melhor). E Li Lucille também. Ah, e teve a  HQ Vó, do Jean, que a Raquel me apresentou e pela qual me apaixonei.
Não vi nenhum Bergman. Vi um Ozu. As melhores coisas que li: As ondas, da Virgínia e A caixa preta do Amóz Oz. Não li os meus Lobos Antunes que me aguardam na estante. E tem também uma coleção inteira da Virgínia me esperando.
O fato é que a seleção do Mestrado deste ano me privou de muitas leituras e de muitos filmes...Mas no fim deu certo.
Fui ao show do Morrissey. A acústica estava péssima, decepcionante... Fui ao show do Bob Dylan e fiquei emocionada com a energia daquilo. Fui ao show do Kid Abelha e desejei chegar aos 50 com as pernas da Paula Toller. Fui ao show da Shirley King e descobri que alegria é possível.
Visitei Buenos Aires. Entrei no planetário do filme Medianeras. Explorei a cidade  a pé, com Raquel, a infatigável,  do Boca ao Palermo. Numa dia de briga, comemos bondiola de cerdo con papas, tomamos vinho e voltamos bêbadas, felizes e reconciliadas para o hotel.
Ouvi blues o ano inteiro.
O trabalho continua sugando a poesia da minha vida. 
Mas a música traz a poesia de volta.
Por isso, bem no finzinho do ano, comprei uma gaita.
E como os negros do Delta do Mississippi eu vou cantando pra suportar as tristezas.

Que venha 2013!