Uma vez escrevi um poema chamado" Visitando Ruth". Na época fui bombardeada de perguntas, afinal, quem era essa tal de Ruth? Um amor antigo? Um amor platônico , ou pseudônimo para uma apaixonite crônica? Acho que naqueles idos esclareci para poucos o mistério. Não sou dessas que explicam poemas. Para mim a penumbra é um dos ingredientes principais de um texto poético. É preciso haver penumbra para dormir e sonhar...
Mas hoje, não sei por que, me deu vontade de contar quem é a Ruth. Mas antes vamos ao poema:
Visitando Ruth
O outono se insinua triste no azul sem nuvens do lá fora...
Há poucas horas, o sol frio desenhou minha sombra no asfalto sujo...
Cores estranhas dançavam em meu coração...
E agora extraio sonhos das entranhas ocas de uma canção melancólica
Em meus pensamentos, os trens desaparecem sempre em curvas cor de cinza
Suaves garotas, numa tarde de verão, trocam delicadezas entre si:potes de mel, conchas onde moram muitos mares e o arco-íris.
E ainda sonhando
colhendo amoras e flores em minha infância de árvores
e caindo, inocente, em minha primeira armadilha de olhos
te evoco
nua e bela
como a pintura impossível
das improváveis asas de um anjo.
Escrevi "Visitando Ruth" numa tarde azul de outono, dessas em que a gente quase sufoca de tanta beleza. Estava no meu quarto, ouvindo uma canção da trilha sonora de "Tomates verdes e fritos" e sonhando, é claro.
(ouvir música para mim é algo sagrado;um ritual como é a oração para os crentes).
Quem assistiu ao "Tomates" saberá que uma das protagonistas se chama Ruth. A outra é a selvagem Idge ( com a qual sempre me identifiquei..)
Há quem diga que na trama há uma amizade profunda entre as duas. Eu sempre enxerguei mais com meus olhos, talvez tendenciosos. ( Para mim o filme é repleto de metáforas homoeróticas. A maioria delas envolve comida, como a cena em que depois de ter enfrentado um enxame para colher um pote de mel, Idge o oferece a Ruth, que entre o espanto e a alegria, experimenta seu conteúdo lambendo o dedos.
A canção da trilha sonora que dá nome ao meu poema se refere ao momento em que Idge, de longe, escondida entre arbustos, com a cara mais triste do universo inteiro, observa as cenas da vida de recém-casada da amiga. (Momentos felizes, a princípio, mas que depois se transformarão na tormenta que será decisiva para o desfecho do conflito).
Então é isso. Era outono, eu estava triste e sozinha e ouvia a canção "Visitando Ruth", do filme "Tomates verdes e fritos". Fui me lembrando de trechos do longa e pedaços de minha história foram se misturando com eles, num devaneio melancólico e lindo.
Segue a canção:
http://www.youtube.com/watch?v=sbSF7mxcmmw
sexta-feira, dezembro 27, 2013
quinta-feira, dezembro 12, 2013
Ainda era verão em Berlim
“ARBEICHT MACHT FREI”- O TRABALHO LIBERTA. O portão era pesado, alto, escuro. Cada letra dessa mensagem era uma espécie de variação artística do formato tradicional e monótono das barras de ferro que, unidas, compõem as grades das prisões. Os dizeres eram parte do portão da jaula e, se não estivéssemos em um campo de concentração, seria até um belo trabalho decorativo.
Além de
pesado, alto e escuro, o portão era fúnebre, como o de um cemitério antigo e
contrastava absurdamente com as fatias de azul do céu, vistas através das
barras de ferro. Eu estava em Sachesenhausen Concentration Camp , localizado
nos arredores da capital alemã, fazendo, acreditem, turismo. O fato é que este
lúgubre lugar, onde mais de cem mil pessoas foram assassinadas durante o
Nazismo, foi transformado em um triste museu que, na atualidade, recebe
visitantes de todo o mundo.
Ainda era
verão em Berlim. Avancei para o lado de dentro. Precisei fazer um esforço maior
do que comumente faço para abrir portas normais. As dobradiças rangeram, como
num filme de terror. Antes de dar início ao meu passeio sombrio, abri e fechei
a porta da gaiola umas três ou quatro vezes. Simples assim: abrir e fechar,
sair e entrar, como se aquelas grades, outrora sempre cerradas, nunca tivessem
sido o sinônimo de uma sentença de morte.
II
Nossa viagem,
até aquele momento, tinha sido feita de vastos sorrisos ensaiados e
direcionados para a sofisticada lente de nossa câmera fotográfica. Mas quando
atravessei o portão de Sachesenhausen, algo mudou para sempre: ali, do lado de
dentro, eu não poderia jamais sorrir. Um mal-estar estranho foi crescendo em
mim e imprimindo gravidade em meu rosto. Não obstante o silêncio sagrado que
envolvia o lugar, o peso de um sofrimento terrível se fazia presente, como se
gritos de pavor houvessem atravessado as décadas e estivessem ali,
reverberando.
Das centenas
de barracões (ou alojamentos) de Sachesenhausen poucos foram preservados. Nas
bases retangulares dos que foram demolidos estão depositadas inúmeras pedras,
que representam cada uma das vítimas do genocídio.
É preciso “ter
estômago” para entrar nos barracões que sobraram. Em um deles (outrora
enfermaria) há uma rica exposição contendo informações sobre a rotina médica do
campo (sobretudo a respeito das castrações e das experimentações
médico-científicas brutais que lá ocorriam); há biografias de prisioneiros e de
nazistas, objetos pessoais (frascos de medicamentos, malas, louças e talheres, vestuários
diversos, etc).
De todas as
coisas, vistas cuidadosamente, duas me fizeram divagar: uma minúscula lata de açúcar
arredondada, semelhante a essas em que, hoje em dia, se comercializam pequenas
quantidades de rapé (ela estava amarrada a uma correntinha, como se relógio de
bolso fosse) e um pijama listrado, azul e branco, dobrado dentro de um
expositor de vidro. O número de identificação do prisioneiro, costurado no
tecido, à altura do peito, estava visível. Logo acima havia uma fotografia em
preto e branco: um judeu vestia aquele pijama.
Objetos têm
uma energia extraordinária. E, não sei explicar por que, alguns têm mais do que
outros.
A latinha de açúcar
tinha legenda. Dessa maneira fiquei sabendo que ela tinha pertencido a um judeu
que a protegia (e a seu conteúdo, é claro) como teria defendido uma mina de ouro. Estava presa entre seus dedos quando seu corpo
foi levado ao crematório para incineração.
Então, um fragmento
triste da história se insinuou em meus pensamentos: fiquei imaginado o homem
lá, dentro daquele inferno, fazendo apenas uma lamentável refeição ao dia,
adoecendo de corpo e alma de tanto trabalhar além de suas forças, vendo morrer,
um a um, seus companheiros e sofrendo de saudades dos filhos, dos quais, em
algum outro campo distante, talvez só restassem as cinzas. E esse homem aperta
a latinha entre os dedos, com força. Ela quase perfura a carne da palma de sua
mão direita. E, dos míseros gramas de açúcar que há dentro dela, o homem coloca
na língua apenas meia dúzia de grãos quase invisíveis, com o intuito de evocar,
em reminiscência velozmente fugaz, a doçura da vida. E assim ele vai
administrando a pequena quantidade, em doses lentas e sofridas, desejando que o
inferno acabasse antes que a lata ficasse vazia. Mas já sabemos o final da
história. E ele não é feliz.
Já o pijama
listrado, azul e branco, era como a mistura entre céu e nuvens que eu via pela
janela do alojamento. Suas cores me fizeram pensar nas fotografias históricas,
em que tudo aparece em preto e branco: o campo, a vegetação, os barracões insalubres
e os corpos esquálidos dos prisioneiros, dentro dos pijamas surrados. Nessas
fotografias tudo parece irreal (como a beleza de Praga vista através das lentes
de óculos escuros), justamente porque faltam as cores.
O cenário real
era colorido e isso era absurdo para mim. Me aproximei da janela e respirei com
urgência. Saí do alojamento, caminhei sobre o trecho gramado. Ouvi o farfalhar
das árvores naquele silêncio sagrado. E
imaginei a movimentação dos homens escravizados, a mancha vermelha de sangue na
roupa de um, a marca amarelada de vômito nas calças de outro, as listras azuis,
perdendo matizes, mas sempre azuis, mesmo que desbotadas. Imaginei a cor de
cada olho aterrorizado pela ameaça da morte. Imaginei o tom de cada pele
marcada pela dor. Era absurdo para mim que o inferno pudesse ter existido sob
um céu de verão, com árvores reverdecidas. Para mim era absurdo saber que no
inferno pudesse ter soprado um vento assim.
Fui ficando
cada vez mais grave. Entrei numa sala de azulejos brancos, que mais parecia um
açougue. Presas ao chão, também com acabamento de azulejos brancos, havia três
mesas de autópsia, tão assépticas que era difícil acreditar que nelas corpos de
gente tinham sido dissecados. No subsolo havia uma sala ampla e gelada, como um
frigorífico. Deduzi que ali tivesse sido uma espécie de morgue, depois me
ocorreu que era uma câmara de gás, por causa dos arranhões nas paredes ( seriam marcas de unhas, como as que há em Auschwitz?) e de
tubulações que vinham de um lugar desconhecido. Por fim, parei de fazer
especulações e dei o fora dali. Era esquisito demais.
Segui para a
área de execuções, dei uma volta pelas ruínas do crematório. Visitei um dos
barracões que era destinado às prisões e outro, onde ficavam os horripilantes
mictórios e salas de banho.
Saí de Sachesenhausen
envelhecida. E me lembrei de Primo Levi, quando afirma que a experiência
traumática das vítimas dos campos de concentração é inenarrável, porque há uma
incompatibilidade simbólica entre o universo concentracionário e a vida do lado
de fora. O que houve ali foi tão absurdo, que não cabe em nossa
linguagem.
Saí de Sachesenhausen
pensando no que há de maldade no humano, na perversidade de um sistema capaz de
engendrar esquemas de morte administrada.
No entanto,
quando atravessei o portão ornamentado com a virtuosa mensagem sobre a importância
do trabalho em nossas vidas, ainda pude ter fé em nossa espécie: o ranger
incessante das dobradiças, provocado pelo entra- e -sai dos turistas me fez
lembrar de que o abrir e fechar daquela grade assombrosa hoje só é possível
porque muitos colaboraram para que os campos de concentração fossem desativados
para sempre. Há a maldade, há a bestialidade. Mas há também bondade no humano.
O museu está
lá, refrescando nossa memória, para que não se repita a catástrofe.
domingo, dezembro 01, 2013
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