sexta-feira, dezembro 27, 2013

E agora extraio sonhos das entranhas ocas de uma canção melancólica

Uma vez escrevi um poema chamado" Visitando Ruth". Na época fui bombardeada de perguntas, afinal, quem era essa tal de Ruth? Um amor antigo? Um amor platônico , ou pseudônimo para uma apaixonite crônica? Acho que naqueles idos esclareci para poucos o mistério. Não sou dessas que explicam poemas. Para mim a penumbra é um dos ingredientes principais de um texto poético. É preciso haver penumbra para dormir e sonhar...

Mas hoje, não sei por que, me deu vontade de contar quem é a Ruth. Mas antes vamos ao poema:

Visitando Ruth

O outono se insinua triste no azul sem nuvens do lá fora...
Há poucas horas, o sol frio desenhou minha sombra no asfalto sujo...
Cores estranhas dançavam em meu coração...
E agora extraio sonhos das entranhas ocas de uma canção melancólica

Em meus pensamentos, os trens desaparecem sempre em curvas cor de cinza
Suaves garotas, numa tarde de verão, trocam delicadezas entre si:potes de mel, conchas onde moram muitos mares e o arco-íris.

E ainda sonhando
colhendo amoras e flores em minha infância de árvores
e caindo, inocente, em minha primeira armadilha de olhos
te evoco
nua e bela
como a pintura impossível
das improváveis asas de um anjo.


Escrevi "Visitando Ruth" numa tarde azul de outono, dessas em que a gente quase sufoca de tanta beleza. Estava no meu quarto, ouvindo uma canção da trilha sonora de "Tomates verdes e fritos" e sonhando, é claro.
(ouvir música para mim é algo sagrado;um ritual como é a oração para os crentes).
Quem assistiu ao "Tomates" saberá que uma das protagonistas se chama Ruth. A outra é a selvagem Idge ( com a qual sempre me identifiquei..)
Há quem diga que na trama há uma amizade profunda entre as duas. Eu sempre enxerguei mais com meus olhos, talvez tendenciosos. ( Para mim o filme é repleto de metáforas homoeróticas. A maioria delas envolve comida, como a cena em que d
epois de ter enfrentado um enxame para colher um pote de mel, Idge o oferece a  Ruth, que entre o espanto e a alegria, experimenta seu conteúdo lambendo o dedos.

A canção da trilha sonora que dá nome ao meu poema se refere ao momento em que Idge, de longe, escondida entre arbustos, com a cara mais triste do universo inteiro, observa as cenas da vida de recém-casada da amiga. (Momentos  felizes, a princípio, mas que depois se transformarão na tormenta que será decisiva para o desfecho do conflito).

Então é isso. Era outono, eu estava triste e sozinha e ouvia a canção "Visitando Ruth", do filme "Tomates verdes e fritos". Fui me lembrando de trechos do longa e pedaços de minha história foram se misturando com eles, num devaneio melancólico e lindo.


Segue a canção:

http://www.youtube.com/watch?v=sbSF7mxcmmw

quinta-feira, dezembro 12, 2013

Ainda era verão em Berlim





“ARBEICHT MACHT FREI”- O TRABALHO LIBERTA. O portão era pesado, alto, escuro. Cada letra dessa mensagem era uma espécie de variação artística do formato tradicional e monótono das barras de ferro que, unidas, compõem as grades das prisões. Os dizeres eram parte do portão da jaula e, se não estivéssemos em um campo de concentração, seria até um belo trabalho decorativo.
Além de pesado, alto e escuro, o portão era fúnebre, como o de um cemitério antigo e contrastava absurdamente com as fatias de azul do céu, vistas através das barras de ferro. Eu estava em  Sachesenhausen Concentration Camp , localizado nos arredores da capital alemã, fazendo, acreditem, turismo. O fato é que este lúgubre lugar, onde mais de cem mil pessoas foram assassinadas durante o Nazismo, foi transformado em um triste museu que, na atualidade, recebe visitantes de todo o mundo.
Ainda era verão em Berlim. Avancei para o lado de dentro. Precisei fazer um esforço maior do que comumente faço para abrir portas normais. As dobradiças rangeram, como num filme de terror. Antes de dar início ao meu passeio sombrio, abri e fechei a porta da gaiola umas três ou quatro vezes. Simples assim: abrir e fechar, sair e entrar, como se aquelas grades, outrora sempre cerradas, nunca tivessem sido o sinônimo de uma sentença de morte.
II
Nossa viagem, até aquele momento, tinha sido feita de vastos sorrisos ensaiados e direcionados para a sofisticada lente de nossa câmera fotográfica. Mas quando atravessei o portão de Sachesenhausen, algo mudou para sempre: ali, do lado de dentro, eu não poderia jamais sorrir. Um mal-estar estranho foi crescendo em mim e imprimindo gravidade em meu rosto. Não obstante o silêncio sagrado que envolvia o lugar, o peso de um sofrimento terrível se fazia presente, como se gritos de pavor houvessem atravessado as décadas e estivessem ali, reverberando.
Das centenas de barracões (ou alojamentos) de Sachesenhausen poucos foram preservados. Nas bases retangulares dos que foram demolidos estão depositadas inúmeras pedras, que representam cada uma das vítimas do genocídio.
É preciso “ter estômago” para entrar nos barracões que sobraram. Em um deles (outrora enfermaria) há uma rica exposição contendo informações sobre a rotina médica do campo (sobretudo a respeito das castrações e das experimentações médico-científicas brutais que lá ocorriam); há biografias de prisioneiros e de nazistas, objetos pessoais (frascos de medicamentos, malas, louças e talheres, vestuários diversos, etc).
De todas as coisas, vistas cuidadosamente, duas me fizeram divagar: uma minúscula lata de açúcar arredondada, semelhante a essas em que, hoje em dia, se comercializam pequenas quantidades de rapé (ela estava amarrada a uma correntinha, como se relógio de bolso fosse) e um pijama listrado, azul e branco, dobrado dentro de um expositor de vidro. O número de identificação do prisioneiro, costurado no tecido, à altura do peito, estava visível. Logo acima havia uma fotografia em preto e branco: um judeu vestia aquele pijama.
Objetos têm uma energia extraordinária. E, não sei explicar por que, alguns têm mais do que outros.
A latinha de açúcar tinha legenda. Dessa maneira fiquei sabendo que ela tinha pertencido a um judeu que a protegia (e a seu conteúdo, é claro) como teria defendido  uma mina de ouro.  Estava presa entre seus dedos quando seu corpo foi levado ao crematório para incineração.
Então, um fragmento triste da história se insinuou em meus pensamentos: fiquei imaginado o homem lá, dentro daquele inferno, fazendo apenas uma lamentável refeição ao dia, adoecendo de corpo e alma de tanto trabalhar além de suas forças, vendo morrer, um a um, seus companheiros e sofrendo de saudades dos filhos, dos quais, em algum outro campo distante, talvez só restassem as cinzas. E esse homem aperta a latinha entre os dedos, com força. Ela quase perfura a carne da palma de sua mão direita. E, dos míseros gramas de açúcar que há dentro dela, o homem coloca na língua apenas meia dúzia de grãos quase invisíveis, com o intuito de evocar, em reminiscência velozmente fugaz, a doçura da vida. E assim ele vai administrando a pequena quantidade, em doses lentas e sofridas, desejando que o inferno acabasse antes que a lata ficasse vazia. Mas já sabemos o final da história. E ele não é feliz.
Já o pijama listrado, azul e branco, era como a mistura entre céu e nuvens que eu via pela janela do alojamento. Suas cores me fizeram pensar nas fotografias históricas, em que tudo aparece em preto e branco: o campo, a vegetação, os barracões insalubres e os corpos esquálidos dos prisioneiros, dentro dos pijamas surrados. Nessas fotografias tudo parece irreal (como a beleza de Praga vista através das lentes de óculos escuros), justamente porque faltam as cores.
O cenário real era colorido e isso era absurdo para mim. Me aproximei da janela e respirei com urgência. Saí do alojamento, caminhei sobre o trecho gramado. Ouvi o farfalhar das árvores naquele silêncio sagrado.  E imaginei a movimentação dos homens escravizados, a mancha vermelha de sangue na roupa de um, a marca amarelada de vômito nas calças de outro, as listras azuis, perdendo matizes, mas sempre azuis, mesmo que desbotadas. Imaginei a cor de cada olho aterrorizado pela ameaça da morte. Imaginei o tom de cada pele marcada pela dor. Era absurdo para mim que o inferno pudesse ter existido sob um céu de verão, com árvores reverdecidas. Para mim era absurdo saber que no inferno pudesse ter soprado um vento assim.
Fui ficando cada vez mais grave. Entrei numa sala de azulejos brancos, que mais parecia um açougue. Presas ao chão, também com acabamento de azulejos brancos, havia três mesas de autópsia, tão assépticas que era difícil acreditar que nelas corpos de gente tinham sido dissecados. No subsolo havia uma sala ampla e gelada, como um frigorífico. Deduzi que ali tivesse sido uma espécie de morgue, depois me ocorreu que era uma câmara de gás, por causa dos arranhões nas paredes ( seriam marcas de unhas, como as que há em Auschwitz?)  e de tubulações que vinham de um lugar desconhecido. Por fim, parei de fazer especulações e dei o fora dali. Era esquisito demais.
Segui para a área de execuções, dei uma volta pelas ruínas do crematório. Visitei um dos barracões que era destinado às prisões e outro, onde ficavam os horripilantes mictórios e salas de banho.
Saí de Sachesenhausen envelhecida. E me lembrei de Primo Levi, quando afirma que a experiência traumática das vítimas dos campos de concentração é inenarrável, porque há uma incompatibilidade simbólica entre o universo concentracionário e a vida do lado de fora. O que houve ali foi tão absurdo, que não cabe em nossa linguagem.
Saí de Sachesenhausen pensando no que há de maldade no humano, na perversidade de um sistema capaz de engendrar esquemas de morte administrada.
No entanto, quando atravessei o portão ornamentado com a virtuosa mensagem sobre a importância do trabalho em nossas vidas, ainda pude ter fé em nossa espécie: o ranger incessante das dobradiças, provocado pelo entra- e -sai dos turistas me fez lembrar de que o abrir e fechar daquela grade assombrosa hoje só é possível porque muitos colaboraram para que os campos de concentração fossem desativados para sempre. Há a maldade, há a bestialidade. Mas há também bondade no humano.
O museu está lá, refrescando nossa memória, para que não se repita a catástrofe.


As dobradiças do portão de  Sachesenhausen Concentration Camp ainda rangem no meu sono.

domingo, dezembro 01, 2013

Fico sempre
cheirando a tabaco.

Sempre linda
aquela sua luz úmida.

(Vasta maré fertilizante
se derrama)

Fogo incendiando
rastros de sax.

Aprender as tardes.
Abrasar este coração despetalado.
Arrebentar em cores.

Sempre linda
aquela sua luz
úmida.

Restos de sax.
Fico sempre
cheirando a tabaco.