domingo, abril 28, 2013

Sobre tardes de domingo e portas fechadas


Houve um tempo em que os domingos me deprimiam. Isso foi quando eu era mais jovem e vida para mim era equivalente a agitação. Domingo era morto demais, dia estacionado no tempo, sem gente, sem som, sem sentido.
Atualmente costumo passar os domingos dentro de casa descansando, porque trabalho muito durante a semana. Domingo virou meu refúgio, minha fuga do mundo. Quando muito, vou até a esquina pegar o almoço. Tarde de domingo passo dentro de livros, dentro de filmes, ou dentro de sonhos, entre um cochilo e outro.

Mas hoje saí. De tarde. O céu estava muito bonito, azul sem nuvens e havia aquela luz de outono que sempre me provocou saudades de coisas que não existem, saudades de uma beleza sem nome. Não havia trânsito, nem de pessoas, nem de veículos, como geralmente acontece nos domingos. E de dentro do meu carro eu percebia a ausência do som e de agitação, e sentia uma paz estranha que, não sei porque, me transmitiam todas aquelas portas fechadas.
As portas fechadas e a calma esquisita que se misturava à atmosfera azul e fria sob a luz outonal.
Antes, quando eu era mais jovem e era domingo e tudo estava parado, a falta de sentido impiedosamente me esbofeteava o rosto. 
Hoje, a tarde de domingo com suas portas fechadas, por segundos, fez com que eu me sentisse plena.

Proust e o amor; eu e a solidão

Marcel Proust escreveu que o amor é uma doença incurável. Concordo, em partes. Durante a vida somos acometidos por ele, que só muda de vetor:As pessoas por quem nos apaixonamos são esses vetores,que fazem a doença ( que tem intensidades variadas, como a influenza) despertar em nós.
Mas acredito que contra o amor vamos ficando também imunizados, como acontece com algumas doenças virais. Quanto mais forte é uma crise, mais a gente poderá estar protegido na próxima. Para sobreviver àquelas dores todas, vamos criando resistência e fabricando algumas grades e cercas eletrificadas em torno de nós.



Mas solidão não tem jeito. Solidão é doença mais grave que o amor, sem cura, sem a esperança auto-imune. Ela começa ainda na infância,quando tardes de inverno nos surpreendem brincando sozinhos no quintal de casa, entre cães doentes e gatos desnutridos.   Quando há as ausências do pai( que foi embora) e da mãe que , de cansaço, desistiu.

E depois, vai se alastrando, percorrendo as veias, misturando-se ao sangue e toma conta da pele inteira. E o coração, despetalado, se contorce todo em ferida sempre viva e aberta.
Depois tudo escurece: o sangue, as veias, a pele... E, como consequência, os olhos ficam cheios de sombra e úmidos, sempre, sempre...
Sim, há defesas para o amor, mas não para a solidão. Ela sim, é doença incurável.

terça-feira, abril 09, 2013

"Killing an Arab"









I
Não, eu não era adolescente quando ouvi The Cure pela primeira vez. Acho que tinha uns 8 anos, lá pela segunda metade dos idos anos 1980 ou início dos anos 1990. E devo ter ouvido no rádio de algum vizinho, porque em casa, o único equipamento de tecnologia que havia era uma televisão com imagem em preto-e branco. Provavelmente devo ter ouvido Friday i'm in love e Boys don't cry,  canções que, na época, tinham conquistado as massas, revelando uma faceta  menos depressiva da banda, em relação  àquela de álbuns anteriores, dos quais   Pornography é um excelente exemplo.


Mas não se enganem. Não passei o resto de minha infância e minha adolescência toda ouvindo The Cure , chorando e batendo a cabeça na parede. Só chorando e batendo a cabeça na parede porque, confesso, naqueles tempos, o Cure me passou despercebido. Creio que porque eu era ainda uma criança e ainda não tinha  organizado minha angústia em linguagem.

Voltei a ouvir o Cure bem depois, lá pelos 18 anos, época em que eu  já gostava absurdamente dos livros e me sentia realizada ao pedalar para longe de casa, sozinha, principalmente quando era domingo, fim de tarde e outono. Nessa altura , meu salgado muro de lamentações já estava bem encharcado: enfim, eu  já estava, há  18 anos, carregando um buraco no peito. Não é fácil. Para ninguém. Coisas da vida de quase todo mundo. E eu tinha lido Camus, que  havia incutido em meu coração uma tristeza trágica e, ao mesmo tempo,  uma vontade insuportável de beleza.
Nesse contexto, apareceu um sujeito completamente maluco, que conheci no Segundo Grau. O Cara me falou do Cure. E me fez ouvir o Cure. E me contou que a canção Killing an arab era uma referência ao Estrangeiro, do Camus, livro que era uma das formas como minha angústia estava organizada em linguagem naqueles idos.
Não parei mais de ouvir.


II


The last day of summer
                                                                 
Nothing I am
Nothing I dream
Nothing is new
Nothing I think or believe in or say
Nothing is true

It used to be so easy
I never even tried
Yeah it used to be so easy...

But the last day of summer
Never felt so cold
The last day of summer
Never felt so old
Never felt so...

Como palavras tão tristes podem agradar alguém?


Um dos integrantes do Joy Division , o Bernard Summer, define assim o "Rock Gótico":  "Uma atmosfera maléfica, mas você se sente à vontade dentro dela"

É isso. É como assistir a um filme expressionista. 
É como sofrer com Proust a ausência de Albertine e, a cada página, constatar  que o tom elegíaco de sua confissão é o mesmo que rege  minha sinfonia de perdas. E meu desejo de Impossível, como em "To Wish Impossible Things"


remember how it used to be
when the sun would fill up the sky
remember how we used to feel
those days would never end
those days would never end

remember how it used to be
when the stars would fill the sky
remember how we used to dream
those nights would never end
those nights would never end

it was the sweetness of your skin
it was the hope of all we might have been
that fills me with the hope to wish
impossible things

but now the sun shines cold
and all the sky is grey
the stars are dimmed by clouds and tears
and all i wish
is gone away
all i wish
is gone away

all i wish
is gone away



II

Fui ao Show do Cure no sábado, 6 de abril, na Arena Anhembi em São Paulo. O espetáculo durou três horas e vinte minutos e foi maravilhoso. Robert Smith está envelhecido, mas seus cabelos grisalhos e ainda mais desgrenhados e a boca enrugada pintada de batom provocaram em mim uma simpatia extra:se não fossem  as pálpebras maquiadas em preto ele seria, hoje, a cara da minha mãe!
40 músicas ao todo, desde sucessos radiofônicos mais comerciais, como  Friday i'm in love, do álbum Wish, a canções de sua fase mais sombria, com as presentes em Pornography foram entoadas como hinos religiosos, por uma multidão de mais de 30 mil pessoas. Um delírio.
A princípio o show aconteceria no estádio do Morumbi, mas foi transferido para a Arena. Me lembro que na ocasião da alteração, fiquei meio desesperada porque precisava cancelar a reserva do hotel que antes me atenderia e procurar por outro, mais próximo do local do evento. Encontrei um de onde daria para ver o show da janela.  Quando hesitava se reservava logo ou não um quarto  , um querido colega de trabalho me disse: " Reserva logo, porque senão os outros adolescentes vão todos pra lá e vão esgotar as vagas  e você vai ficar sem".
O colega estava me sacaneando, obviamente, pois  não sou adolescente. Já até passei dos trinta!
Mas...
Eu queria mesmo que o The Cure fosse uma banda que adolescentes de hoje escutassem. Queria que esses meninos e meninas pudessem  experimentar essa beleza toda que passa a existir quando letras tão líricas se harmonizam com melodias ora introspectivas e melancólicas, ora agressivas, gritando o ódio que se sente por um mundo onde o amor parece estar morrendo. Queria que eles aprendessem a  transformar experiências em linguagem.

Imaginem  quão belo seria  ver uma multidão  de crianças evocando, num refrão, uma das cenas mais icônicas da literatura, que é aquela em que, num gesto absurdo, sucumbindo ao sem sentido do mundo, de pé diante de um homem na praia, Meursault, ofuscado pelo sol, aperta o gatilho, em O Estrangeiro, de Camus?

To Wish impossible things.