quinta-feira, junho 06, 2013

O silêncio que antecipa a morte

Pouca gente sabe, mas o Tarkovsky é meu cineasta favorito.
Soube de sua existência há uns bons anos, quando alguém iniciou a exibição de Solaris na sala da casa de um amigo, onde eu me encontrava. Não é preciso dizer que a lentidão da narrativa provocou protestos e o filme foi rapidamente substituído por um blockbuster, bem mais ao gosto dos adolescentes que éramos.
Anos mais tarde ouvi de novo seu nome. Foi numa loja de DVDs: Raquel me deixou intrigada ao me contar que o primeiro e o último longa deste gênio terminavam praticamente do mesmo jeito, com cenas finais muito parecidas, como se um círculo estivesse sendo fechado. (Os filmes são A infância de Ivan, de 1962 e O sacrifício, de 1986, respectivamente).
Mas o que mostram ambas as cenas finais? Também fiquei curiosa e foi por esse motivo que comecei a assistir aos filmes dele. E quis começar pelo começo, seguindo a ordem cronológica das filmagens. Então minha iniciação no assombroso mundo de Tarkovsky não se deu com o primeiro longa, mas com um média metragem que veio a público antes: falo de O rolo compressor e o violinista, de 1960. Só assisti ao belíssimo A infância de Ivan um pouco mais tarde, e pude assim matar minha curiosidade: a cena final, à qual me referi acima, mostrava uma criança (Ivan, o protagonista), deitado sob uma árvore.
Mas não se enganem: não saí desesperada em busca do último filme para me certificar se nele a cena final do primeiro se repetia de verdade na imagem derradeira. Eu estava seduzida, e queria assistir a todos os outros; meu desejo tinha mudado de rumo.
Tive de adiar o Andrei Rublev,( que seria o próximo da lista) por dois motivos: a péssima qualidade da imagem do arquivo que baixei na internet e as mais de três horas de duração da película, às quais, infelizmente, naquele momento, minha rotina movimentada não me permitiria me dedicar. Mas segui vendo Solaris (1972), O espelho (1974), Stalker(1979), Nostalgia (1983) para, enfim, chegar ao último, O sacrifício e ver o tal menino, debaixo da tal árvore, na tal cena final, como no longa de estreia. Mas essa curiosidade boba, que a principio tinha me provocado, acabou perdendo todo o sentido depois que entrei efetivamente na gravidade do universo úmido de Tarkovsky.
II
Tarkovsky me assombra. Como poucos conseguem fazer. Como um Pasolini o faz, por exemplo, em Teorema (filme que nos desnuda em plena aridez desértica e nos fere com um réquiem de Mozart, imprimindo em nossos corpos as absurdas dimensões da ausência); ou como um Bergman, em Sonata de Outono, que nos sufoca com o jorro de tanta mágoa desentranhada. (A última vez que saí do cinema tonta de perplexidade foi há mais de um ano, quando assisti ao inquietante Cavalo de Turim, de Béla Tarr).
Estava com saudades desse assombro.

III
Então chegou o feriado de Corpus Christi, um dia bem frio. Embora eu tivesse um monte de coisas para fazer, resolvi deixar tudo de lado; decidi me enroscar em cobertores felpudos e passar toda uma tarde assistindo ao Tarkovsky que me faltava: Andrei Rublev, o filme de mais de três horas, aquele que em outra ocasião eu tinha deixado para depois.
IV
Andrei Rublev foi um monge russo de verdade. Viveu na Idade Média. Pintava quadros. Era talentoso.
Nada mais banal.
O que me encanta no Tarkovsky é a sua genialidade alquímica, capaz de transformar o que serviria apenas como material para a comportada biografia de um homem religioso em uma profunda reflexão sobre a dúvida: a perda da fé nos preceitos cristãos, a desconfiança em relação ao caráter representativo da arte e da linguagem e a descrença na organização social.
Ao longo das mais de três horas de Andrei Rublev assistimos ao dilaceramento do herói: do lado de fora do mosteiro onde passou grande parte da vida, ele se encontra com uma realidade muito diferente da experimentada até então.
 Rublev viaja à Moscou, com o objetivo de atender ao convite que recebera, para pintar o interior de uma igreja, onde deveria representar as cenas do Juízo Final. O choque com a realidade é marcado por decepções, que já se iniciam em sua trajetória. Logo no início da viagem, Rublev e seus companheiros de trabalho presenciam o assassinato de um grupo de pagãos, por cavaleiros da fé. As atrocidades são, portanto, cometidas em nome de Deus, nome sagrado que Rublev, até então, acreditava ser um sinônimo para amor.
Já em Moscou, o monge tem sua primeira crise criativa. Começa a duvidar do caráter representativo da arte. Superada a angústia, pinta. No entanto,  em seguida, vê tudo o que criou sendo destruído pela violência da barbárie levada pelos incendiários tártaros, que invadem a cidade, estuprando mulheres e matando homens e animais.
Nas cenas de invasão, o grau de absurdo da crueldade e da violência é levado ao extremo quando as vitimas são animais: impossível não demonstrar repulsa, por exemplo, na sequência em que um cavalo é ferido e cai de uma estrutura de madeira, quebrando as pernas. Assistimos à sua insistência, às suas vãs tentativas de erguer-se e ficamos pasmos quando um figurante atravessa friamente o peito do animal paralítico com uma lança. (O olho revirado do cavalo morto é, para mim, a imagem do absurdo). E há também a terrível cena em que alguém ateia fogo em uma vaca viva.
Foi com esse mundo de violência que Rublev defrontou-se (mundo que contradizia a Palavra de Deus registrada nos livros e tantas vezes proferida nos rituais litúrgicos do mosteiro...). O herói atinge o ápice da absurdidade quando, para proteger uma mulher meio idiota (a Muda Santa) de um estupro, mata seu agressor.
Sentindo culpa, transtornado e decepcionado, o protagonista experimenta o fel do desespero. Seu olhar escurece e passar a ser sempre uma pergunta pelo Sentido. Sem obter respostas, ele decide interromper seu fluxo criativo: para de pintar por não acreditar mais que a arte possa ressignificar o que quer que seja; enfim,o caos não pode ser ordenado. Além disso, ele se cala. Seu voto de silêncio é resultado da perda da fé no poder da palavra como elemento de comunicação entre os homens.
Estamos diante de um herói em crise. Então avançamos para a narrativa do ato final, denominado “O sineiro” que me deixou toda arrepiada. (O filme é dividido em atos, como uma peça teatral).
Eis um resumo: Rublev está silencioso, há dezesseis anos. Então, os cavaleiros do príncipe saem à procura de alguém que domine as técnicas da feitura de sinos. No entanto, todos os especialistas estavam mortos. No povoado vizinho só foi encontrado Boriska,  filho de um dos sineiros falecidos. O rapaz afirma conhecer o segredo para a modelagem de bons sinos e acaba convencendo os cavaleiros a levá-lo com eles. O rapaz havia mentido: não sabia de segredo nenhum. E o pior: Se ele não tivesse sucesso na empreitada, sua cabeça seria cortada.
Boriska representa o gênio criativo, autodidata, impetuoso, cujo coração enfurecido transborda confiança em si mesmo. Boriska acredita na arte que faz. Mesmo não conhecendo o manual, o “segredo” dos sineiros, ele conclui o trabalho  que lhe haviam incumbido. Seu sino badala e sua cabeça se mantém presa ao pescoço.
A força criativa de Boriska comove Rublev, que tudo observa. E após tantos anos de silêncio, o monge fala. Ambos se aproximam, se adotam e seguem juntos, Rublev pintando e Boriska fazendo sinos...
Eu não chamaria isso de final feliz, porque o processo todo é tão sofrido, que nos últimos minutos do filme os personagens ( Rublev e Boriska) têm o aspecto de soldados famintos que passaram meses em trincheiras. Mas há uma positividade que me agrada. Há uma revolta contra o sem sentido do mundo, contra os absurdos que nos deixam cabisbaixos, desesperançosos. Há uma força contrária à resignação.
E há, sobretudo, as vozes da arte se opondo e se sobrepondo ao silêncio que antecipa a morte.
Pouca gente sabe, mas o Tarkovsky é meu cineasta favorito.