sexta-feira, setembro 12, 2014

Lugar

Aqui
onde foi abolido
o hímen
úmido hífen
que nos separava.

Aqui
onde a língua é dinâmica
e dedos são talheres.

Aqui
onde o grelo
destrona o falo:
É rijo
É  lindo
É talo.

Anoitecer

Tecer o amor.
Depois tecer
a dor
de o amor ter sido.

Amortecer a queda.

Amor só é suave
na subida: canção de harpa.

O inverso
é farpa.

quarta-feira, setembro 03, 2014

Fear of the dark

Aqui tão escuro. E veio um vento ventilhando pedrinhas e gravetos, arremessando-os contra a janela de madeira. Ainda é madrugada, falta muito pra amanhecer?
Agarrada à saia do vento veio a chuva, chufininha, umedecendo. Se eu fosse raiz fincada em solo fértil brotaria como brotou aquele pé-de-mamão num túmulo do cemitério de Justinópolis. Os frutos nasciam aos pares, sempre. Pendiam como os tristes testículos de um deus. Pendiam, como os peitos caídos da terceira idade.
Testículos e peitos que os coveiros comiam.

Uma anedota

Dizem que um morto enterrado no cemitério de Justinópolis foi condenado por algum ser inefável a continuar enxergando para sempre. Por isso de seu túmulo feioso nasceu uma robusta jabuticabeira. Cada Jabuticaba, pasmem, era um olho.
Ai que medo.
A rotina do cemitério era aquela pasmaceira, nem um pouco interessante de  ver: abre buraco, fecha buraco; entra cortejo, padre rezando, dentadura escapando.
Assim, assim.
Ai meu deus.

Numa manhã esquizofônica em que bem-te-vis cantavam nos intervalos dos ruídos de uma britadeira, um casal depositava flores no túmulo vizinho do condenado, enquanto tentavam, a seu modo, se comunicar com a morta recente e querida.
O defunto dos mil olhos de jabuticaba morria ( ha!) de inveja de situações desse tipo. Ninguém o visitava, coitado. Não era digno de rosas. Teve vontade de gritar: “Também quero uma flor!”.
Mas fora condenado a ter olhos e não bocas.
O casal se sentiu observado.
Ai que medo.
Ai meu deus.

Vez em quando um coveiro ia até a frondosa árvore carregada de frutinhas brilhantes, arrancava um punhado delas e chupava, com gosto.
O defunto morria (ops!) de ódio.
“Vá chupar o olho do  cu da vó”
Queria gritar.
Mas fora condenado a ter olhos e não bocas.

Um pô, Emma! em homenagem a anedota que inventei:

Aqui jaz.
Aqui, jamais.
Aqui
apenas
jabuticarás.

Bruce Dickinson e Emily Dickinson não eram casados, oh meu sonho. Eles nasceram em séculos diferentes oh, meu cérebro. Além do que ela era tão branca voz da solidão e ele tão fear of the dark.

Fear of the dark!

Fear of the dark!

Dá certo não.

       Já vai amanhecer?
            Sei não.
O vento continua arremessando na janela os destroços das coisas.
E eu aqui.

Louquinha, louquinha de pedra lascada.

segunda-feira, agosto 18, 2014

O que o lixo me deu


Eu era Criança-Menina
Um Pássaro Sujo 
e com fome

E o lixo me deu
certa vez
um saco repleto de livros;
uns bonecos tristes e mutilados
e um caderno velho de poemas

que eu lia pros gatos;
que eu lia pra lua
que eu lia na rua
quando lá não havia ninguém.

E o lixo me deu outras coisas:
porque lá atiravam
pneus em chamas
então o lixo me deu minha primeira queimadura;

porque lá atiravam cacos de vidro
então o lixo me deu meus primeiros ferimentos;

porque lá atiravam animais que morriam
então o lixo me deu o cheiro podre
do corpo sem alma.

O lixo me deu
certa vez
uma caixa com muitas memórias dos outros:
cartões com figuras em alto-relevo
que guardavam mensagens de desejos de felicidades eternas;
cartas para um amor distante;
pequenas anotações ordinárias;
fotografias em sépia.

O lixo meu deu
misturada a cor amarela daqueles papéis
uma miséria que era maior que a miséria
que eu tinha,
e eu senti com força
a força de toda saudade do que não existia
e um gosto
de tempo
de resto
e ruína.

Eu era uma Criança-Menina.
Eu era a Menina Encardida
que ninguém queria amar.

Eu lia poemas pros gatos;
eu lia poemas pra lua;
eu lia poemas na rua
quando lá não havia
ninguém.

quinta-feira, agosto 14, 2014

Refrão para um blue



Sonhei que tinha perdido uma caixinha vermelha, com algo valioso dentro.
A pessoa que eu mais amava no mundo brigou comigo e, em seguida, me deixou.
A caixinha vermelha com algo valioso dentro não era aquela que guarda minha gaita.
A caixinha vermelha era meu coração.

Refrão para uma manhã chuvosa

Amor que grita
e ninguém escuta

Amor que abre
a ferida oculta

Amor que morre
e ninguém sepulta

quarta-feira, julho 30, 2014

Balada para uma estrela partida


Se uma estrela se partisse
em minhas mãos,

cortariam os meus dedos
seus pedaços?

Estilhaços são estilhaços...

E se a lua arrebentar
há dor também

Como toda dor
fincada em cacos:

1- do copo
que continha o leite derramado;

2-do anel que tu me deste
( o que era vidro)

3- do amor que tu mentias.

sexta-feira, junho 27, 2014

Sem título

Hoje acordei me contorcendo de cólicas, chamando por Raquel.Mas ela já tinha ido embora e eu já sabia disso, porque ela sempre sai antes de mim. Mesmo assim, eu fingi que não e percorri todo o apartamento repetindo o nome dela.
Aí foi a hora da madeleine mergulhada no chá: o cheiro e o frio de uma outra manhã entraram pelas janelas. Era 1986, acho. Eu tinha 5 anos. Me lembro de ter acordado e de ter notado a ausência de minha mãe. Percorri todo o barraco ( que para mim era enorme, por causa do meu tamanho e tinha ficado maior porque ela não estava lá)
Acordei meu irmão. Contei pra ele sobre meu desespero. Não sei qual de nós dois teve a ideia de sair a procura da mãe pelas ruas do bairro.
Saímos. De mãos dadas ( acho que foi a única vez em nossas vidas que andamos assim: depois disso nossos punhos sempre estiveram fechados: ele para bater e eu para redobrar a força da defesa)
Meu irmão era também cabeludo. Tinha cabelos lisos, como os de minha mãe. Os meus eram Black Power, como os de meu pai.
Não andamos nem um quarteirão assim, descabelados, cheios de meleca no nariz e desamparados: na primeira esquina nos encontramos com ela, que tinha saído pra comprar pão.
Brigou com a gente, não entendeu a nossa solidão.
Tirou as melecas dos nossos narizes, fez uma trança nos meus cabelos.
Retornamos, os três, de mãos dadas, para casa.

terça-feira, junho 24, 2014

Desordem

Porque ela passou 
por aqui
dentro de mim tudo é
desordem.

Porque ela passou
por aqui
-Estação de loucura-

não há temperatura
em que eu não seja febre

não há voz
em que eu não seja
grito

Porque ela passou
por aqui

há apenas
a dor
da pele
cortada à volúpia.

sexta-feira, junho 06, 2014

Blue para a lâmina das horas


A mãe dormia
de boca aberta
quase toda vestida de tempo.

A pele do corpo inteiro 
cortada: a lâmina das horas.

Bem de perto
as linhas do rosto formam um mapa.
De dentro dele
o desenho de uma palavra,
pedra não lapidada,
escapa:

-Órfã!

A palavra-pedra pulsa.


Escorro pelas fendas da noite
comendo a cor amarela
das lâmpadas dos postes
das ruas em outono,

ruminando
a memória entranhada
num viaduto
numa árvore
numa esquina
num muro

Essa infância triste
misturada a ladrilhos.

Mas a pedra ainda pulsa
A ineficácia das fugas.

Ao redor
a música dos ponteiros
imita
a ameaça da bomba.

quarta-feira, junho 04, 2014

O pé, a cruz, o prego

O pé, a cruz, o prego

Era eu 
e uma grande ferida.
Estávamos em posição de combate.
Ela funda e vermelha
obstinada inflamação
no pé esquerdo
da mãe envelhecida

A ferida tinha a força
de tudo o que continua

Eu tinha
uma garrafa de soro
um pacote de esparadrapos
um rolo de ataduras

e um amor feroz
mais fundo do
que tudo  o que  parece
nunca mais
ter
fim.

Cio

Ela é toda
tão felina
quando a pele inflama
alisa, alisa
o corpo inteiro
depois
arranha

segunda-feira, maio 05, 2014

Pequena crônica sobre a impotência



Era um cachorro preto, vira-latas, de porte médio.
Alguém, num infeliz rito de crueldade, tinha lhe arrancado quase todos os pelos do corpo e todas as camadas de pele que existiam entre pelo e carne.
O encontrei numa esquina escura, em certa madrugada em que eu também sofria pequenas mutilações. Simbólicas, é preciso dizer.
Ele estava de pé, como quem resiste. Mas olhos de cão não foram treinados para esconder tristeza e dor.
Olhou para mim pedindo socorro.
Me aproximei e, com delicadeza e revolta, toquei sua carne exposta e maltratada.
Eu nunca saberia lidar com uma ferida tão grande como aquela.

terça-feira, abril 01, 2014

Flores que já secaram

Hoje, antes de sair para o trabalho, passei nos cabelos uma loção anti-frizz que tinha cheiro de flores mortas.
Me lembrei, enquanto me olhava no espelho e registrava o nascimento de mais uma marca de expressão, de meus diários juvenis, cujas páginas exalavam o mesmo perfume: eu costumava depositar entre elas flores inteiras, as quais eram esmagadas quando meus segredos se fechavam, sufocando-as. Dias depois a flor despetalada e seca impregnava de um odor triste de saudade meus rabiscos quase ilegíveis.
Anos antes, tinha sido a época das tardes no cemitério. Brincávamos, nos escondendo atrás de túmulos, conversávamos com o coveiro, enquanto ele abria a boca vermelha da terra e ficávamos silenciosos e graves nas horas de enterro. Eram tardes de sol forte. Pisávamos em cima da morte, ríamos de sua pretensão de sempre nos roubar alegria.
Em todo aquele grande terreno, sobre cada demarcação, no ar que por ali circulava, predominava o cheiro das flores fenecidas. ( Desconfio de que minha melancolia atual tenha nascido ali. Tenho quase certeza de que ela tem a ver com o cheiro das flores mortas).
Eu tinha quase 30 anos quando o pai morreu.
Foi uma madrugada estranha aquela, em que me afastei demasiado da sala de velório e fiquei caminhando em círculos sobre lápides, como se quisesse rir da morte outra vez.
Mas eu não podia.
Ao amanhecer o pai continuava morto e as flores que enfeitavam seu peito gelado já haviam secado.
E o cheiro estava lá, devorando todas as coisas.

quinta-feira, março 27, 2014

É aqui que eu quero ficar


"Belíssimo" esse Horizonte 
saturado de carros.
Cidade-lego
eternamente
montada e desmontada.
Das ruínas de um passado recente
se ergue, desajeitado, outro mapa. 

Eu era pacata antigamente,
não dirigia assim, feito uma louca
pelas avenidas principais.

É que agora
nossas rodas
custam a girar.

E monóxido de carbono
me deixa entorpecida,
disparo quando dá.

Mas esse tanto de fumaça
não me fará cortar os pulsos
nessa noite entristecida.

Aqui não tem mar
pra eu tomar um banho bem clichê
pelada
sob raios de luar

(e esquecer um pouquinho
essa corrida esquisita que é a vida);

Mas tenho uns discos de blues.
E mais tarde
vai ter bar.

Guilhotinas, facas na pele

Adorava a fórmula de Bhaskara. Gozava decifrando logs, calculando progressões, descobrindo ângulos. ( Galhos numéricos brotavam da ponta do lápis mais inteligente da classe, bordando trios e trios de páginas.)
Um dia, o amor ( esse safado) escapuliu de um romance de Alencar, que ela tinha acabado de ler (para fazer prova), e comeu todo o seu caderno de tabuada.
E o amor,além de safado,amava guilhotinas, facas na pele. Ao amor agradava apenas as operações de razão. As de proporção nunca foram compatíveis com seu gênio, extremamente difícil.

Sobre envelhecer



Se meus cabelos fossem lisos estariam sempre muito curtos, como os de um rapaz. Mas não são e eu não irei nunca cortá-los. No futuro, terei a cabeleira longa, cacheada e cinzenta. Serei uma bruxona, bem estranha e bonita.

A pergunta fundamental

O que leva uma pessoa a ser lésbica, gay ou bissexual? Foi a Silvinha que me perguntou.
Minha resposta poderia passar por muitos caminhos. Eu poderia dizer que é simplesmente o desejo. Aí não saberia até que ponto nosso desejo é determinado biologicamente e até que ponto ele é atravessado pela cultura, pela visão de mundo de cada um. Exemplo: se alguém me perguntasse diretamente: " Simone, o que te levou a ser lésbica (vulgo sapatão)?" Eu me embolaria toda porque não saberia dizer se isso tem mais a ver com meus genes, meus hormônios ou sei lá o que, ou com minha antiga inclinação a escapulir de esquemas sociais seguidos pela maioria. Então, será que já tinha algo na minha natureza, guardado dentro das minhas células e minha visão de mundo e valores só vieram contribuir para que eu não tivesse nunca medo de assumir uma identidade tão discriminada?
Confesso que fiquei com vontade de responder a sua pergunta assim: "42"! ( Vide Guia do mochileiro das galáxias). Mas achei que seria infame demais de minha parte. ( risos).
Então, amiga, como não tenho respostas psicológicas, sociológicas,filosóficas nem biológicas, vou responder assim: O que leva uma pessoa a ser gay, lésbica ou bissexual? Hum... uma música, ou um olhar, ou um céu, ou um vento, ou um livro, ou um cheiro, ou uma vontade louca de estar perto, ou tudo isso junto somado a presença/existência de uma outra pessoa que é anatomicamente igual a você, mas que, de alguma forma, por algum processo, também associou essas coisas todas aí de cima a você e isso acabou fazendo um sentido bonito para ela também.
No mais, a única coisa que fica faltando pra pessoa que "não era" gay "se "tornar", nada mais é do que uma cantada bem dada.
42!

quarta-feira, março 19, 2014

Hospital

No hospital ( não, não era na sala de cirurgia e eu não via nada por vidraça nenhuma) fazia o calor que costuma fazer às duas da tarde em qualquer verão tropical.
Era um ambulatório de anticoagulação. Isso significa que grande parte das pessoas que estavam lá já tinham sofrido trombose, derrame ou infarto. E isso, por sua vez , significa que o panorama era composto ou por pessoas muito velhas, ou por pessoas amputadas, ou por pessoas tortas. Ou por pessoas muito velhas, amputadas e tortas.
Panorama triste de ver.
Eu sei que já devia ter me acostumado.
Quando pai morria foi assim: uns bons anos percorrendo esses corredores frios e dolorosamente brancos, cheios de gente torta, mutilada e secando... E secando.
E agora aqui estou de novo. Para que a mãe não entre em processo de morrer. Periodicamente a gente vem aqui, para impedir que ela fique torta, ou amputada. Velha ela já está. Até eu, nesses anos escorridos. Tem jeito não.
Mas então: estou sentada num banco de pedra, entre duas velhas. Aguardo um resultado. Uma das senhoras não tem um pé, a outra está retorcida numa cadeira de rodas.
Sinto cheiro de decrepitude.
Minha cabeça empreende um filosofar neblinoso.
Um senhor encurvado olha com melancolia ao nosso redor. Diz pra outro: "Ser humano não vale nada"
Saio de onde estou e me sento entre eles.
A conversa me interessa.

domingo, março 09, 2014

Eu estava só florescendo...

O jardim era belo
visto por qualquer passante.

Visto de qualquer ângulo,
era incrivelmente belo.

Tulipas
Gérberas
Miosótis
e cravos.

De qualquer ângulo,
não havia dúvida.

Mas não para quem
ousasse se deitar
entre os canteiros.

Não para quem,
atraído pelo pulsar da cores,
enxergasse o jardim pelo avesso,

ao se aproximar demasiado
deixando o olhar escorrer
por um caule
até encontrar,
sob a umidade da terra,
fixadas,
monstruosas raízes.

sexta-feira, fevereiro 14, 2014

De como conheci o amor

I

Na história de como conheci o amor existe uma longa calçada, um hospital onde alguém que eu amava morria, uma tarde de novembro, uma bela mulher desconhecida e os olhares que trocamos quando passamos uma pela outra.
Tudo começa na longa calçada por onde eu passava, deixando atrás de mim um rastro de tristeza. Eu tinha deixado alguém que eu amava morrendo num hospital. O hospital era desses que cheiram à velhice naquela fase em que a morte ronda os leitos dos internos: cheiro de pele enrugando velozmente e de fraldas geriátricas sujas.  O cheiro estava nos quartos, nos corredores, nas escadarias, nas rampas, nos uniformes dos enfermeiros e nas flores pálidas de um jardim mal cuidado que me fazia pensar em cemitérios.
Eu ia pela calçada, cabisbaixa, pensando. Alguém que eu tinha amado havia ficado lá, naquele hospital, morrendo. Então a bela mulher desconhecida passou por mim na longa calçada e olhei para ela como quem pede socorro, como quem não quer morrer envenenado pela própria solidão. Olhei para ela como quem grita de desespero.
Alguém que eu amava morria num hospital.
II
Na história de como conheci o amor existe, também, um livro. Um livro que tinha uma história triste de paixão e que eu tinha lido para algumas pessoas, entre as quais estava a bela desconhecida que, logo depois, veio me pedir o livro emprestado. Me contou que havia passado por mim, certa vez, na longa calçada do Campus da Universidade e que meus olhos pediam socorro.
-É que alguém que eu amava- eu disse- tinha ficado, naquela tarde, num hospital, morrendo.
III
Na história de como conheci o amor existe uma velha canção, uma noite muito fria, um ônibus que nunca vinha e uma crise de tosse.
A velha canção é There Is A Light That Never Goes Out que sempre me deixou toda arrepiada porque eu tinha passado a minha adolescência morrendo de solidão e tudo o que eu queria era ouvir de alguém o que a canção dizia: “Me leve para sair esta noite/quero ver luzes/quero ver gente/Me leve no seu carro/Por favor, não me deixe em casa/ Porque esta casa não é minha, é deles e eu não sou mais bem-vinda/E se um ônibus de dois andares bater em nós/ morrer ao seu lado/que jeito divino de morrer/e se um caminhão de dez toneladas nos matasse/morrer ao seu lado/bem, o prazer e o privilégio são meus.”
E dentro da noite fria estávamos nós: eu e ela, a desconhecida de antes, a passante da longa calçada do campus. A crise de tosse era dela e o ônibus que não vinha nunca era o meu.
E a noite fria foi virando madrugada e ficando cada vez mais gelada. E nada do ônibus. Não obstante a crise de tosse, que piorava com a queda da temperatura, ela não me deixou sozinha.
E não ter me deixado só naquela escuridão foi como ter cantado para mim a velha canção dos Smiths.
III
Depois disso muita coisa aconteceu: ela veio morar comigo, nos “casamos” em Praga, quando prendemos um cadeado com nossos nomes gravados no parapeito de uma ponte, junto a milhares de cadeados semelhantes.
A ideia era atirar a chave no rio Moldava, mas ficamos com medo de matar engasgado algum peixe desavisado, que estivesse em extinção.
E até hoje ela me provoca arrepios, como uma velha canção que a gente nunca se cansa de ouvir.




segunda-feira, fevereiro 10, 2014

Um poema de Anne Sexton

Elizabeth foi embora

1
Você jaz no ninho de sua morte real.
Muito além das pontas dos meus dedos nervosos
que tocavam sua cabeça movente
Sua velha pele enrugando-se, o sopro dos pulmões
curto como de menina quando levanta a vista,
até encontrar meu rosto balançando sobre o leito humano.
E, em algum lugar, você gritou: me deixe ir embora, me deixe ir embora...

Você jaz na jaula de sua última morte
Mas não era você
Rechearam suas bochechas, eu disse;
essa mão de argila, essa máscara de Elizabeth
não são verdadeiras. De dentro do cetim e da camurça desse leito inumano
algo gritou: me deixe ir embora, me deixe ir embora...

2
Eles me deram suas cinzas e fragmentos de ossos.
Chacoalhando como cabaça, numa urna de papelão
Chacoalhando como pedras  abençoadas pelo forno que te consumiu.
Te esperei na catedral de feitiços,
E te esperei no país dos vivos
ainda com a urna ecoando em meu peito
quando  algo gritou: me deixe ir embora, me deixe ir embora...

Assim que joguei fora o que restou de seus ossos
 me ouvi gritando por sua face perdida
sua cara de maçã, pelo simples abrigo
 de teus braços, os odores de agosto de sua pele. Depois separei seus vestidos
e os amores que você deixou, Elizabeth.
Elizabeth, até que você foi embora.

Tradução: Simone Teodoro
 Anne Sexton . Elizabeth gone. In  To bedlam and part way back- 1960

Menina má

Acordo sempre 
em cima do horário
E corro
Contorno poças de lama
pulo 
o entulho
escalo muros e montanhas.

Espero
as longas demoras da noite
Choro
entre uma espera e outra
e entre uma noite e outra
envelheço

Danço quando posso
sozinha
no meio da sala

Ainda vou pro Oriente!
Trepo.
Santa Maria!
Pinta e Nina.
Odeio pinto
A vida me
nina
A vida, menina má.

Música me entorpece
Poesia me faz sonhar.
Sei que um dia
eu morro:

Mas trepo.
E meu gozo
constrange o paraíso.

sexta-feira, fevereiro 07, 2014

Saudades de você em Paris

Estávamos ali, nos arredores do Sena. Era primavera. Nossa estada na cidade chegava ao fim.
- Já estou com saudades de você em Paris- Ela disse.
Eu ri.
- Você já está com saudades de Paris. – Retruquei. – Eu sou apenas um detalhe decorativo dentro desse sonho que é estar aqui. Sou só parte de uma bela metáfora.
Ela ficou brava. Argumentou que sem mim a viagem não teria graça; que minha presença dava sentido a tudo.
Fiz silêncio, enquanto um vento bonito fazia com que nossos cabelos ficassem mais poéticos.
Tudo bem, ela teria saudades de mim em Paris. Mas seria sem Paris que eu voltaria para casa com ela. E eu, sem Paris, reclamaria de ter de acordar cedo para ir para o aeroporto. Eu, sem Paris, continuaria tendo surtos de mau- humor diante de cada segundo de atraso dos voos. Surtaria também por causa do desconforto das poltronas do avião, por causa do cansaço das 11 horas de viagem. Eu, sem Paris, construiria meu muro de lamentações por causa do preço do taxi e reclamaria muito, muito da poeira acumulada na casa, fechada há semanas.
E ela me teria assim, por quanto tempo quisesse,mas sem Paris. E não teria saudades, aposto, a menos que nos separássemos por dias, semanas ou meses, provocando, com o afastamento, aquele efeito mágico que faz todos os nossos defeitos desaparecerem.

E pensando em todas essas coisas, tive medo. Medo de que ela deixasse de me amar por causa de algum gesto bobo meu, com o qual, de repente, implicasse. Da mesma forma como alguns gestos bobos da pessoa que a gente ama podem também, ao contrário e inexplicavelmente, encher cada vez mais nosso coração de ternura; da mesma forma, inversamente proporcional, como ela, de um jeito muito bonitinho,derrete meu coração todo, quando chama biscoitos waffer de mirabel.

quinta-feira, fevereiro 06, 2014

Desconcerto

Tem um som de violino vindo de longe, muito longe agora... Se mistura às batidas e ruídos constantes de marretas e de máquinas de construção civil.
A música, mesmo com essas interferências todas, é bonita e triste ao mesmo tempo.
Mas não quero me emocionar.
Hoje quero ter a dureza da pedra que o operário, do outro lado da janela, insiste em arrebentar em pedaços.
(...)
Coisas bonitas e tristes me desconcertam.

Reflexões a partir de uma barata esmagada

Esmaguei a barata na parede. Ela era grande, bem nutrida. Longilíneas antenas.
Lamentei-me pela pintura recente, agora manchada por aquele líquido levemente avermelhado, ralo. Sangue de barata.
Pode sangue de barata funcionar como madeleine proustiana e cuspir em nossa cara estilhaços de fragmentos de passado, ruínas sobre as quais , de imediato ( e sem querer), nos debruçamos em trabalho de reconstrução arqueológica?
Aquele borrão na parede pôde e a ele se sobrepuseram outras marcas de sangue. De gente. E a parede era outra também e meu irmão, no meio da noite, a esmurrava e a chutava com fúria, a ponta dos dedões dos pés explodindo em carne viva e sangue muito, muito vermelho. (Era um barraco tão pobre que nem era preciso lamentar a pintura).
Ele tinha pesadelos. Monstros, samurais, assassinos e Bruce Lees eram as vítimas daqueles socos e pontapés desesperados e todos nós acordávamos sobressaltados com o trepidar da casa inteira.
Nossas paredes eram atacadas também em outras situações.
Quando nosso desejo rugia, por exemplo.
E nosso desejo rugia com muito mais força quando chegava a lamentável época de Natal.
Não é preciso explicar por que.
E meu irmão batia a cabeça na parede.
E eu batia a cabeça na parede.
Nosso desejo insatisfeito, uma tristeza funda ocupando, dentro de nós, o espaço de todas as outras coisas que faltavam. A aridez de nossas vidas.
A casa trepidava. O sonho ruim em plena luz, quando todos já estavam despertos.
Foi com 11 anos que entendi tudo.
Eu estudava um velho livro de biologia, ia ter prova.
Vi lá os combates nas savanas. Fascinada e assustada eu lia sobre belos e altivos felinos que estraçalhavam.
Nunca mais bati a cabeça na parede, nem quando estava com fome. Sepultei para sempre minha mágoa e revolta contra o pai e a mãe. Eles não tinham culpa, compreendi.
A vida era assim: uns estraçalhavam. Aos outros cabia a triste opção de não se deixar estraçalhar.
O tempo passou como tem mania de fazer, irremediavelmente.
Não sei se meu irmão se curou dos pesadelos.
Mas, desde então, os meus sonhos maus começaram e, em certa noite, acordei com meu grito.
Até hoje estou gritando.

O cu do pinto

 Você já soprou o cu de algum pintinho?- Perguntei.

- Não!- Ela respondeu, achando minha pergunta inusitada.-Por quê?

-É que acontece uma coisa meio mágica quando a gente faz isso. Foi meu pai que me ensinou, quando eu era bem pequenininha.

-Ah, é? O quê?- Ela estava curiosa.
- Ele nos manda beijos.
- O cu do pintinho? Nos manda beijos?

( Silêncio)
- E tem de soprar com força?
( Gargalhadas)

- Não! Não se sopra como se quisesse encher um balão. É sopro sem contato e de leve. É só mandar um ventinho lá. Ninguém quer estourar a cabeça do pintinho, né?
(Gargalhadas).

-Meu pai me ensinou outra coisa também.
- Que medo!( Risos)

- Você sabe quando um gato é macho ou fêmea?
- Não.
_ Meu pai me ensinou como saber. Gatos machos não ficam com o bingolim balançando como a maioria dos bichos. E são tão andrógenos... Como saber? Meu pai me ensinou assim: a gente escolhe um gato, abre as pernas dele, como se a gente fosse ginecologista, com cuidado, pra não machucar. Só vai ter pelo lá. No lugar que era pra ter alguma marca de diferença, não tem nada! É incrível como a natureza deles não está interessada em marcar diferenças. Amo gatos.! A lição do meu pai era: passa o dedo! E vai passando. Se for macho, o Bingolim aparece. Se não, vai ficar do mesmo jeito.
Ela quase morreu de rir.
- Sério? Seu pai então te ensinou a deixar o gato excitado? ( Gargalhadas, quase às lágrimas).
-Pois é. E me ensinou isso com o orgulho de biólogo, que ele nunca foi. O resultado disso foi devastador. A gataria que se multiplicava no nosso quintal não teve mais sossego: eu e meu irmão passávamos tardes e tardes perseguindo os coitados, só para realizar tais verificações técnicas.

O coelho da Clarice

Hoje quando abraçava minha mãe para encaixar o cinto de segurança dela no lugar apropriado para isso senti um clima estranho na rua onde havia estacionado o carro. Se não fosse a minha presença, a da mãe e a de um rapazinho com um uniforme antiquado, que me olhava como se algo surreal estivesse acontecendo, o lugar estaria deserto.

Então circulei o veículo para entrar pela porta do motorista. O garoto se aproximou falando que tinha um gato dentro do carro, no banco de trás.

- Como assim, um gato? Não deixei os vidros abertos, tenho certeza!

E fui ver, e lá estava um dos gatos mais bonitos que já vi, fazendo arte na espuma do meu banco traseiro, se espreguiçando, estapeando coisas invisíveis no ar.

- Gente, mas como ele entrou?

Então o menino de roupa engraçada me explicou que viu o gato entrando por baixo do carro, por ali, perto de onde fica o cano de descarga.

O gato era da avó dele.

Eu disse: Menino, você viu ele entrando mesmo , né? Porque eu juro que não estava tentando roubar o gato da sua avó.

_ Não moça, vi sim. Posso pegar ele de volta?
_ Pode.

Aí o menino pegou o gato e, não obstante todas as explicações físicas de como o bichinho tinha conseguido entrar, eu acabei ficando com uma deliciosa sensação de mistério, como aquela que a gente fica quando lê a história da Clarice Lispector sobre um coelho, gordo, muito gordo que conseguiu escapar de uma gaiola cujas grades eram muito estreitas e que estava ,definitivamente ,trancada.

Mulheres em trânsito

Tudo engarrafado, aí a alça do sutiã escorregou. Fui arrumar e devo ter demorado dois segundos a mais para arrancar e levei um buzinaço na orelha que quase me deixou surda. Fiz sinal para o moço mal educado voar por cima do meu carro. Ele ficou bravo, jogou farol alto, me ofuscou. E colou. Ele ia colando e eu ia reduzindo. Tava com pressa não. Nem tinha como. O moço, todo plaboy, ficou nervoso com minhas reduzidas e, com fúria, foi pra pista da esquerda pra ficar do meu lado, pra me xingar. Abriu o vidro e deu um berro, que nem ouvi direito, mas fui logo dizendo:
_Ô do pinto pequeno!

Porque, na minha opinião, uma pessoa pra agir assim, de forma tão arrogante com as outras, só pode ter algum problema de autoaceitação.

Aí ele ficou uma fera.
Me mandou ir pra puta que pariu e me chamou de sapatão. E fechou o vidro rapidamente,porque só então percebeu que eu não estava sozinha: Samuel Medinaestava comigo, eu não era uma mulher sozinha dirigindo.

Pra puta que pariu eu nunca fui quando me mandaram pra lá, porque minha mãe é uma linda e mesmo se tiver sido puta, isso não é da conta de ninguém.
Mas ,pelo menos, fui reconhecida.
Se pudesse, eu andava com rótulo: sapatão enfurecida: favor tratar com delicadeza.

Zangief

Hoje na academia, um rapaz que era a cara do Zangief do video-game se aproximou de mim e me perguntou se eu lutava alguma coisa. Aí eu disse que não, que já lutei há um milhão de anos, uma lutinha coreana que não valia nada. Ele me disse assim" Você parece aquelas "muié" que luta." Eu ri e ele foi lá levantar 200 quilos no supino. Cinco minutos depois voltou, perguntado por que eu usava esse " negócio" no joelho. ( O negócio é uma par de joelheiras). Expliquei que machuquei o joelho no início do ano, que por isso faço musculação, para fortalecer os músculos, e que a joelheira evita lesões nas articulações na hora dos exercícios mais pesados. Então o cara me disse que também tinha machucado o joelho, que era go go boy(!!!!) e que tinha caído de um palco na hora que tava dançando e tirando a roupa. Segurei a gargalhada. O menino era meio bobão, coitado. Sempre me dá vontade de rir desses meninos fortões e bobões, como a gente ri de uma criança que lambuza a cara toda tomando sopa.

Mas confesso que gostei de ouvir que eu pareço uma mulher que luta. Assim como gostei de ouvir outro dia de um enfermeiro que ele achava que eu tinha estudado Educação Física. Assim como gostei de ser barrada na porta do shopping recentemente ( os seguranças perguntaram para mim e para Raquel se a gente tinha mais de 18. Respondemos. Eles pediram a confirmação do documento. Mostramos.)

Bom saber que o tempo tem sido um camarada. Gosto muito mais de mim hoje, trintona, do que quando eu tinha vinte e poucos anos!!!!

Na periferia da periferia

Aqui estou, na periferia da periferia da periferia da periferia Ad infinitum do Capitalismo. ( Leia-se bairro da Lagoa, região de Venda Nova, Zona Norte de Belo Horizonte, mais especificamente rua 28, templo de consumo à moda periférica, desde a minha infância longínqua. Construções mal planejadas, aglomerados de lojas onde se vende de tudo, desde porta-moedas a carros semi-novos).
Meus olhos não acreditam: entre duas lojas de sapatos de parede mofada, uma Cacau-Show.
Fico comovida e compro uma trufa.

quarta-feira, janeiro 01, 2014

Genealogia da angústia


I
Do sono da criança

No céu fundo 
da boca
sobre a língua satisfeita
dormia o polegar.

II
Do episódio da perda

Súbito
dali expulso
perdeu razão de existir:
o dedo tinha sido feito
para matar a fome da boca
agora
irremediavelmente
oca.
Devastador divórcio:
O Vazio
escorreu pela garganta
e corrompeu
o coração.

III
Detalhe sobre o Vazio

O Vazio
queima como gelo
e tem peso de pedra

IV
Da fome

Hoje
a boca nostálgica
pede
suplica
e nada basta.

A língua
ainda
sonha
o sabor
do sono.