quinta-feira, março 27, 2014

É aqui que eu quero ficar


"Belíssimo" esse Horizonte 
saturado de carros.
Cidade-lego
eternamente
montada e desmontada.
Das ruínas de um passado recente
se ergue, desajeitado, outro mapa. 

Eu era pacata antigamente,
não dirigia assim, feito uma louca
pelas avenidas principais.

É que agora
nossas rodas
custam a girar.

E monóxido de carbono
me deixa entorpecida,
disparo quando dá.

Mas esse tanto de fumaça
não me fará cortar os pulsos
nessa noite entristecida.

Aqui não tem mar
pra eu tomar um banho bem clichê
pelada
sob raios de luar

(e esquecer um pouquinho
essa corrida esquisita que é a vida);

Mas tenho uns discos de blues.
E mais tarde
vai ter bar.

Guilhotinas, facas na pele

Adorava a fórmula de Bhaskara. Gozava decifrando logs, calculando progressões, descobrindo ângulos. ( Galhos numéricos brotavam da ponta do lápis mais inteligente da classe, bordando trios e trios de páginas.)
Um dia, o amor ( esse safado) escapuliu de um romance de Alencar, que ela tinha acabado de ler (para fazer prova), e comeu todo o seu caderno de tabuada.
E o amor,além de safado,amava guilhotinas, facas na pele. Ao amor agradava apenas as operações de razão. As de proporção nunca foram compatíveis com seu gênio, extremamente difícil.

Sobre envelhecer



Se meus cabelos fossem lisos estariam sempre muito curtos, como os de um rapaz. Mas não são e eu não irei nunca cortá-los. No futuro, terei a cabeleira longa, cacheada e cinzenta. Serei uma bruxona, bem estranha e bonita.

A pergunta fundamental

O que leva uma pessoa a ser lésbica, gay ou bissexual? Foi a Silvinha que me perguntou.
Minha resposta poderia passar por muitos caminhos. Eu poderia dizer que é simplesmente o desejo. Aí não saberia até que ponto nosso desejo é determinado biologicamente e até que ponto ele é atravessado pela cultura, pela visão de mundo de cada um. Exemplo: se alguém me perguntasse diretamente: " Simone, o que te levou a ser lésbica (vulgo sapatão)?" Eu me embolaria toda porque não saberia dizer se isso tem mais a ver com meus genes, meus hormônios ou sei lá o que, ou com minha antiga inclinação a escapulir de esquemas sociais seguidos pela maioria. Então, será que já tinha algo na minha natureza, guardado dentro das minhas células e minha visão de mundo e valores só vieram contribuir para que eu não tivesse nunca medo de assumir uma identidade tão discriminada?
Confesso que fiquei com vontade de responder a sua pergunta assim: "42"! ( Vide Guia do mochileiro das galáxias). Mas achei que seria infame demais de minha parte. ( risos).
Então, amiga, como não tenho respostas psicológicas, sociológicas,filosóficas nem biológicas, vou responder assim: O que leva uma pessoa a ser gay, lésbica ou bissexual? Hum... uma música, ou um olhar, ou um céu, ou um vento, ou um livro, ou um cheiro, ou uma vontade louca de estar perto, ou tudo isso junto somado a presença/existência de uma outra pessoa que é anatomicamente igual a você, mas que, de alguma forma, por algum processo, também associou essas coisas todas aí de cima a você e isso acabou fazendo um sentido bonito para ela também.
No mais, a única coisa que fica faltando pra pessoa que "não era" gay "se "tornar", nada mais é do que uma cantada bem dada.
42!

quarta-feira, março 19, 2014

Hospital

No hospital ( não, não era na sala de cirurgia e eu não via nada por vidraça nenhuma) fazia o calor que costuma fazer às duas da tarde em qualquer verão tropical.
Era um ambulatório de anticoagulação. Isso significa que grande parte das pessoas que estavam lá já tinham sofrido trombose, derrame ou infarto. E isso, por sua vez , significa que o panorama era composto ou por pessoas muito velhas, ou por pessoas amputadas, ou por pessoas tortas. Ou por pessoas muito velhas, amputadas e tortas.
Panorama triste de ver.
Eu sei que já devia ter me acostumado.
Quando pai morria foi assim: uns bons anos percorrendo esses corredores frios e dolorosamente brancos, cheios de gente torta, mutilada e secando... E secando.
E agora aqui estou de novo. Para que a mãe não entre em processo de morrer. Periodicamente a gente vem aqui, para impedir que ela fique torta, ou amputada. Velha ela já está. Até eu, nesses anos escorridos. Tem jeito não.
Mas então: estou sentada num banco de pedra, entre duas velhas. Aguardo um resultado. Uma das senhoras não tem um pé, a outra está retorcida numa cadeira de rodas.
Sinto cheiro de decrepitude.
Minha cabeça empreende um filosofar neblinoso.
Um senhor encurvado olha com melancolia ao nosso redor. Diz pra outro: "Ser humano não vale nada"
Saio de onde estou e me sento entre eles.
A conversa me interessa.

domingo, março 09, 2014

Eu estava só florescendo...

O jardim era belo
visto por qualquer passante.

Visto de qualquer ângulo,
era incrivelmente belo.

Tulipas
Gérberas
Miosótis
e cravos.

De qualquer ângulo,
não havia dúvida.

Mas não para quem
ousasse se deitar
entre os canteiros.

Não para quem,
atraído pelo pulsar da cores,
enxergasse o jardim pelo avesso,

ao se aproximar demasiado
deixando o olhar escorrer
por um caule
até encontrar,
sob a umidade da terra,
fixadas,
monstruosas raízes.