sábado, maio 30, 2015

Uma fila

Há alguns anos, eu guardo um coração. Coração mesmo, órgão, como a "lua satélite" do Bandeira. Vigio com zelo, conto batidas, procuro remediar suas irregularidades rítmicas, percorrendo farmácias, esticando a corda da vida com caixas de comprimidos.
Há anos também eu lido com uma ferida.Ferida mesmo, sem metáfora. Sou especialista em marcas de ataduras.
Toda vez que leio num papel algum resultado que me diz que o coração dela está um pouco mais fraco e a cada vez que a ferida se abre de novo, eu sinto um gosto de fim e de derrota.
Como se fora incapaz de manter o fio esticado, como se houvera falhado.
II
Mãe ficou doente de uma hora para outra.
Quando a encontrei em casa, só, ela não podia respirar. No caminho até o hospital, pensei que assistiria a sua morte enquanto dirigia e que aquela se tornaria a mais infeliz de todas as noites mais infelizes que já amarguei nessa vida.
Desde então, alimento seu coração com pílulas. Desde então, vigio seu pulsar através de imagens ultra- sônicas que me fornecem números que me indicam medidas de força e desempenho.
III
E é por isso que frequentamos este ambulatório, onde pessoas fazem exames periódicos para também vigiarem seus corações. Aqui funciona também um bloco cirúrgico. O que mais se vê são velhos adiando a morte e jovens estropiados. Muita gente não tem uma das pernas. Muita gente não tem nenhuma. Muletas, cadeiras de rodas e tristeza pingando de olhos. E gente mal educada nos guichês de atendimento.
Uma fila.
Aí, na fila, um senhor de noventa e tantos tenta passar na frente de todo mundo.Alega ter prioridade.
Eis que começa o fuzuê.
Um rapaz, cuja perna provavelmente tinha sido triturada por uma roda de caminhão num acidente de moto, se revolta e manda o senhor de noventa e tantos tomar no cu, porque aqui, meu senhor ( esse "meu senhor" foi cheio de ironia e raiva) não tem isso de prioridade não, todo mundo tá fodido, o senhor tá com o pé na cova, morreu e esqueceu de cair e eu aleijado para sempre, vai tomar no cu, vai se foder, vai furar fila na casa da puta que te pariu.
O senhor de noventa e tantos se ofende e vem arrastando sua corcunda lá da boca do guichê e desce um murro no peito do rapaz da perna triturada. E lhe dá um empurrão. O rapaz cai prum lado, a muleta voa na direção de uma velha meio morta, que vegeta numa cadeira de rodas.
O senhor de noventa e tantos avança sobre o rapaz da perna triturada, que ainda não tinha conseguido se levantar. Dá-lhe tapas, puxa-lhe os cabelos.
O segurança aparece para acabar com a confusão.
Quando o senhor de noventa e tantos é levado para um canto pelo guarda, está chorando. Murmura para si mesmo: " nunca diga, nunca diga, seu filho da puta, que eu estou morrendo"
IV
Há alguns anos, eu guardo um coração.Eu o alimento com pílulas e analiso números que indicam medidas de força e desempenho.
Eu trago sempre um pacote de ataduras.
Minha função é manter esticada a corda da vida.

sexta-feira, maio 29, 2015

Catástrofe

Dez mil trilhões, de trilhões, de trilhões, de trilhões, de trilhões, de trilhões, de trilhões, de trilhões de anos será o tempo total de existência do universo. Um pouco antes da grande catástrofe, por aqui só haverá aridez e desolação: não mais o mar. Não mais as sombras das copas das árvores. Nunca mais esse céu.
Somente um sol expandido, fumegante, faminto e a paisagem em brasa. Estrelas haverá, mas serão estranhos astros congelados.
De nós nem sequer um vestígio fossilizado.
No entanto, atravesso os ventos e as ruas movimentadas nessa manhã iluminada de outono.Plantas germinam, há vozes e cheiros em toda parte.
Ainda há céu e ele é dolorosamente azul e desconcertante de beleza.Como alguns sonhos que ainda ouso. Nos quais há uma promessa e um grito sem resposta.Nos quais há o amor atrás de uma porta que nunca abre. Nos quais chove como apenas em sonho. Chove como apenas num poema do Pessoa.
Chove, eu amo, há uma porta fechada.
Desperto, não chove já e o céu é vasto de luz nesta manhã em que mora minha saudade.
De nunca ter sido o que nunca saberei.
Quando a atmosfera solar tragar de vez a órbita terrestre eu já terei me dissolvido, há tempos, na umidade do oco.Minha carne, meus olhos, meus cabelos. O calor já terá derretido todas as minhas vértebras e dentes e outras partes endurecidas de mim.
Mas por enquanto ainda é milagre.
E atravesso a rua e a luz da manhã enchendo os pulmões do ar gelado que me alimenta.
Vem junto um cheiro de flores maceradas, de café, incenso e merda.
Por enquanto ainda é milagre.

A música das águas

Maio amanheceu
Cantando
Notas de chuva
E frio.
A música das águas
Dodecafônica tempestade
Embala
Nosso sono-quadro em
Chiaroescuro,
Nosso sono quente
E de ternuras macio.
Nosso sono:
Tua respiração
Em minha face.

Entulho

Tenho voz aveludada,
Dizem,
Mas 
No estômago, eles não sabem,
Toneladas de entulho
Na garganta, aspereza e
Cacos de vidro.
Se sangro pouco
Quando falo
Ou se há um canto em vez de um grito
É questão de alquimia
É porque sou macumbeira, minha filha.

Essa lua, esse conhaque

A infância talvez fosse azul
não houvesse tanta barata.
Não houvesse
barriga vazia
as tardes talvez
fossem.
A fome é
alucinógeno natural.
O inferno
indo e
vindo,
criança desnutrida na gangorra
do parquinho
infestado de pedófilos.
Não houvesse tanta miséria
a infância
talvez
fosse.

Com licença, com licença poética

Tenho apenas minhas mãos
e um tesão maior que o mundo
A vontade de amor
sempre me paralisou o trabalho
Sou anjo esbelto e safado
Solidão me come por dentro
diariamente
Tenho minhas mãos
Sou mulher desdobrável
Eu sou.

Diva, macumbeira


I
No centro de macumba
a mãe
caminhava no círculo em brasa.
Os santos desciam
para girar com ela.
Foi assim que aprendi
a dançar no fogo.
Além disso
a Avó Preta
do céu de Olorum
olha por mim
Rainha Louca
cantando no meio da roça
distante de uma história paterna.
II
Também sou Rainha de mim.
Tenho um teto todo meu.
Paguei o automóvel
em sessenta prestações.
Foi ninguém que me deu.
Homem nenhum me tem.
Sou de outra mulher
que é Rainha também.
Ando pela casa,
sem roupa
e no Divã meu deito
lendo Anna Akhmátova.

Para quem tropeça

Mais um poema se perdeu
quando eu descia
com a pressa habitual
as escadas sujas do metrô.

Como de costume
foram abertas todas
as portas dos vagões.

Nesta manhã
mais uma vez
pessoas colidem
como baratas envenenadas.

Para que tanto ombro, meu Deus?
Pergunta meu coração
com a voz vacilante
de um convalescente.

Me sento numa cadeira verde
recolhendo junto ao peito
uma imensa asa ferida.

Lá fora faz sol.
Mas a paisagem é sempre
meio cinza
para quem tropeça
nas próprias ataduras.

Muitos carnavais

A pele
Não faz ruído
Quando enruga,
Meu amor.
O tempo borda em silêncio
Em cada face
Um mapa de morte.
Em cada rosto
Marcado
Foi esculpido
À navalha
Um mapa de dor.

Domingo

Ela me diz
que estou tão triste
porque viu
em cada olho meu
uma antiga umidade.

Revisito velhos discos.
Há canções que ecoam
sempre que a morte atravessa o jardim.

Minha tristeza
é de quem acaba
de voltar de um funeral.

Com a mão direita
seguro uma estrela partida.
Seus estilhaços se afundam
em minha carne.

( de que vale um punho fechado quando está sangrando?)
Na mão esquerda
trago uma rosa morta.
A escuridão de seu corpo
avança para o meu coração.

Inércia

Inércia 
é também
movimento infinito
Voar para sempre
retilínea
uniforme
ou até que
um corpo me ampare
ou até
que me arrebente a parede.
Ação, reação
e uma sinfonia
para o amor mais destrutivo.
Um lamento
e um blue
para o potencial
explosivo de todo amor
que começa com metáforas.

Poeminha safadinho

Para 
saciar
saudade
siririca
sem-vergonha.
Fabulosa felina
arranha o caos
engole a lua
e sonha.

Alparazolam

Meu coração
é uma cripta.
Aqui não chegarão
vozes de aquém.
Silêncio é luxo
só gente morta tem.

Meu coração
é um bunker.
As bombas
ficaram do lado
de fora,

Para dor no peito
nitroglicerina.
Para dilacerar-se
em espetacular explosão
idem.

Ambiguidade sulfúrica
Disfarçada
com a cor
e a textura
do mel.

Mas meu coração é uma cripta.
O amor ficou
do lado
de fora.
Pronunciei
meu nome
para o grande espelho
da sala de espera.
O Som
retornou em eco
Como se eu estivesse
à beira do vazio

Esperar Saturno

Enquanto esperava Saturno
Colei mil vezes meu coração
A Solidão hospedada em meu útero

Enquanto esperava Saturno
Colhia amoras
nos intervalos da dores

Enquanto esperava Saturno
Decorei a Primeira Elegia
A Solidão alargando os espaços
por dentro
A Lua sangrava através do meu corpo

Esperei Saturno
com livros nas mãos:
"Tulipas são perigosas", eles sussurravam
"Flores que falam não dizem nada
além de mentiras"

Enquanto esperava Saturno
me masturbava
Colhendo Luas nos intervalos das dores
Amoras sangravam através do meu corpo

E quando Saturno voltou
Explodi, sem pesar,
meu triste museu de sarcófagos.